Nádia Kienen
Universidade do Sul de Santa Catarina - UNISUL
Sílvio Paulo Botomé
Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC
Livro: Esteve, J. M. (1999). O mal-estar docente: a sala de aula e a saúde dos
professores.
A saúde do professor depende da sala
de aula. Será? José Manuel
Esteve, um experiente profissional espanhol da área da Educação, examina essa
possibilidade e, com sua experiência de professor em vários países da Europa,
avalia o trabalho que realiza como estudioso do fenômeno do “mal-estar
docente”. Seu livro é uma excelente leitura para educadores, professores e
cientistas que estudam tanto os fenômenos educacionais como aqueles
relacionados à saúde na sociedade
ou nas organizações, nos processos de trabalho ou
nas relações entre as pessoas. Um texto de alto nível merece uma leitura
cuidadosa, e esse é o caso do livro “O mal-estar docente” de José Manuel
Esteve, que chega ao Brasil com tradução de Durley de Carvalho Cavicchia,
publicado pela Editora da Universidade do Sagrado Coração (Bauru, SP), em1999.
A partir, principalmente, das décadas de 1960 e 1970, ocorreram
transformações sociais, políticas,econômicas e culturais que
afetaram diretamente a vida das pessoas. Nesse sentido, não é
socialmente correto, nem ético ou justo desenvolver um projeto de ensino que
não faça jus às novas exigências sociais como, por exemplo, manter um ensino de
elite para uma população que
nada tem a
ver com valores elitistas. Não é objetivo da
educação repassar ou,meramente,
treinar habilidades técnicas.
Cabe ao trabalho educativo,
como examinaram Postman
e Weingartner (1972), desenvolver
um novo tipo
de pessoa, com capacidade indagadora, flexível, criadora,tolerante,
inovadora, capaz de enfrentar incertezas e ambigüidades de forma orientada. Uma
pessoa que seja capaz de formular significados novos e viáveis para lidar com
as mudanças no meio, principalmente aquelas que
ameaçam a sobrevivência
individual coletiva. É a educação que torna possível decidir o que as pessoas
deverão ser capazes de fazer no futuro delineando, assim,
a sociedade que
existirá nos próximos anos. É por
meio dela que são construídas –ou
ao menos deveriam
sê-la – grande
parte das capacidades técnicas,
científicas, culturais e também éticas que constituirão o potencial das pessoas
para lidar com a realidade social. Por
tudo isso, parece necessária uma revisão dos referenciais, dos objetivos e do
tipo de ser humano a ser formado pelo trabalho educativo. Uma definição que
precisa vir da sociedade e dos professores que realizam o trabalho de
construção da capacidade das pessoas para viverem nessa sociedade.
No exame do “mal-estar docente” parece útil que alguém
seja capaz de: 1º) situar e conceituar “mal- estar docente”; 2º) explicitar os
indicadores desse tipo de fenômeno; 3º) compreender as relações entre tais
indicadores; 4º) indicar possibilidades para diminuir os efeitos negativos do
ciclo degenerativo da eficácia docente. Esses são os quatro objetivos do autor
nessa obra sobre o fenômeno do “mal-estar” funcional no exercício do trabalho
de educador.
Para
compreender o que
acontece com as condições de saúde dos docentes, é
necessário utilizar um enfoque multidisciplinar, na medida em que existem
muitos fatores que afetam tais condições. Sendo assim, variáveis sociais,
políticas, culturais, das relações estabelecidas no ambiente escolar, além de
variáveis mais especificamente relacionadas aos próprios docentes,
tais como sua
experiência, seu status socioeconômico, sexo, tipo de instituição em
que ensinam etc., precisam ser consideradas para que seja possível caracterizar
amplamente as condições de saúde dos professores. Não levar em conta essas
variáveis significa estudar
o fenômeno de
forma parcial e fragmentada. Assim, o uso de abordagens muito genéricas,
que consideram apenas variáveis relacionadas ao contexto socioeconômico, desconsiderando
aquelas relacionadas às condições específicas de cada docente, falsifica ou
compromete a compreensão do “mal-estar docente”.
Analisar as condições de saúde dos professores
exige que seja
explicitada, primeiramente, a concepção de saúde
que será adotada. Esteve considera nessa obra que as
pessoas têm suas condições de saúde alteradas quando já não têm mais capacidade
para trabalhar ou estão muito próximas a isso. Considerar a saúde como um
processo no qual podem ocorrer graus de alterações de conforto e de segurança das
pessoas amplia a
percepção do que pode ou não ser alterado como “condições
de saúde docente” (ver Chaves,
1980; Rebelatto &
Botomé,
1999). A própria falta de reconhecimento ou a
dificuldade em relacionar-se com os colegas ou os alunos, por exemplo, pode
produzir determinadas sensações e percepções nos docentes que, muitas vezes,
podem ser consideradas como uma forma de “adoecimento”, na medida em que
diminui a situação de conforto e
de bem-estar. Considerar
apenas os casos nos quais o
afastamento do trabalho já ocorreu parece não dar conta de todo o fenômeno do
“mal- estar”, na medida em que desconsidera as várias alterações que,
geralmente, antecedem a impossibilidade para o trabalho propriamente dito.
Contextualizar o trabalho docente é estritamente
essencial para que seja possível compreender suas condições de saúde. Um
aspecto do atual exercício docente está relacionado à defasagem de sua formação
profissional, pois ela ainda está calcada em uma imagem do “bom professor”. Uma
imagem associada, basicamente, às características de personalidade que o
indivíduo deve apresentar para praticar “uma boa docência”, como se fosse
responsabilidade única do professor o sucesso ou o fracasso na educação. Essa idealização
do “bom professor” é mistificação, na medida em que é necessário considerar
vários fenômenos contextuais (sociais,
econômicos, políticos, do próprio ambiente de trabalho, das condições
possibilitadas para o exercício da docência etc.), além das características
pessoais do professor, para que o exercício docente possa ser efetivo.
A formação do professor precisa desenvolver
competências que auxiliem
os docentes a
reverem suas atuações quando constatam um fracasso na relação com os
alunos. Essa revisão pode ocorrer por meio do estudo da realidade em que os
alunos vão viver, com o fim de o ensino responder, pela formação dos alunos, às
necessidades e exigências do meio. Quando
isso ocorre, há
um deslocamento da concepção de “problemas na sua
personalidade” para uma concepção mais sistêmica, na qual são considerados
aspectos outros como a inadequação de suas atuações ou de estratégias
utilizadas para ensinar, para administrar o ensino, por exemplo.Outro aspecto a
ser considerado como influência no trabalho do educador é o pouco
reconhecimento de sua profissão, que surge por meio de uma representação
decadente do trabalho docente, que transparece
em expressões como
“escolhe ser professor quem não
consegue ser outra coisa”; bem como dos baixos salários, os quais têm estreita
relação com um baixo
status social que,
por sua vez, influencia os níveis salariais que são
oferecidos aos docentes. É uma relação circular na qual o status de professor
condiciona seu salário, e ao mesmo tempo, tal salário condiciona um nível “pra
lá de baixo” do papel de docente na sociedade. Nesse sentido, como se não
bastassem a formação profissional defasada e a falta de reconhecimento da
profissão de educador, ocorre um aumento das exigências e da responsabilidade
com uma inaceitável contrapartida: diminuição dos salários. Sim, os professores
têm a incumbência de ampliar cada vez mais seu campo de atuação, de desenvolver
cada vez mais competências em seus alunos para que eles possam lidar com a
atual realidade social e, como conseqüência, recebem salários minguados e um
reconhecimento fatalista relacionado a uma visão de que só é professor quem
não foi
capaz de conseguir desenvolver
outra profissão. Lamentável para o professor, para a educação e para a
sociedade.
Com tudo isso, também aumentou nas escolas a ocorrência
de atos de violência de diferentes tipos por parte dos alunos, produzindo medo
e insegurança nos docentes. Apesar de a probabilidade de “ataques reais de
violência” ser baixa, a maioria experimenta sensações de medo pelo fato de
saber da existência e da possibilidade de ocorrência de violências que podem,
algum dia, ser direcionadas a eles. Não só a violência física, mas as várias
manifestações de descaso, desconsideração, desprezo e desvalorização, pesam
muito na condição de docência no sistema educacional.
“Burnout”, absenteísmo, inibição (corte do envolvimento
pessoal no trabalho) e adoção da rotina como referencial de qualidade (ou do
que “é correto”) são as conseqüências mais comuns do mal-estar docente. Esteve
indica que, do ponto de vista estatístico, o absenteísmo, a rotina e a inibição
são muito mais comuns do que alterações na saúde mental propriamente dita. Ele
estudou alguns milhares de professores por um período de sete anos, utilizando
as licenças oficiais por doença que constavam nos arquivos da Inspeção Médica
da Delegação de Educação e Ciência em Málaga. A partir desses estudos, indicou dados
relacionados aos tipos de licenças mais comuns, a características de gênero e
idade das populações mais afetadas, bem como ao número médio de dias de
afastamento em cada ano, desde 1982 até 1989. Observou que as mulheres são mais
afetadas do que os homens; a média de idade não variou muito, aproximando-se
dos 40 anos; a duração média das licenças diminuiu, indo de 41 dias no período
de 1982 a
1983 para 26,45 dias no período de 1988 a 1989. Os motivos de licença mais
freqüentes foram: 1º) traumatologia; 2º) otorrinolaringologia; 3º) psiquiatria.
No capítulo final de sua obra, o autor desenvolve um
modelo compreensivo do mal-estar docente que vai além da incidência das
dificuldades objetivas (como a inadequação da formação, falta de reconhecimento
social etc.) sobre a interação entre professor e aluno e sobre as
possibilidades de atuação do próprio docente. O autor considera, basicamente,
duas possibilidades para o professor: 1) aprender por tentativa e erro e 2)
fracassar. No caso de o professor aprender por tentativa e erro, existem duas
possibilidades: a) o professor pode possuir os recursos adequados para lidar
com a situação de docência ou b) pode carecer deles, mas envolver-se no
trabalho independentemente disso. No caso do professor que possui os recursos
adequados é possível falar em “auto-realização
do professor por
meio do magistério”. Já no caso
do professor que não possui os recursos, mas se envolve no trabalho mesmo
assim, há
tensões e dificuldades que se acumulam, porém, o
professor mantém seu esforço e sua motivação. Ele trabalhará cada vez com mais
tensão, pois tem dificuldades e, muitas vezes, não consegue eliminar os
problemas. Nestes casos são comuns
estados de ansiedade generalizada (Seligman, 1977; Vasques- Menezes &
Soratto, 2000). São fortes candidatos ao “burnout”. Eles se culpam por seu
fracasso no magistério.
Na obra de Esteve é considerada a natureza social do
“mal-estar docente”, deslocando-o de uma compreensão internalista, na qual o
sucesso ou o fracasso do exercício profissional dependem exclusivamente do
indivíduo, para uma compreensão do
fenômeno como sendo
multideterminado e instável. Um
fenômeno que faz parte de um sistema complexo de relações entre múltiplas
variáveis, não só da personalidade do indivíduo, mas do próprio contexto (tanto
microssocial, relacionado à realidade da escola onde atua; quanto macrossocial,
relacionado ao contexto social, econômico e cultural da época). Certamente os
professores têm sua parte de responsabilidade no que lhes acontece no ambiente
de trabalho, na medida em que, apesar desses fatores, têm atuações diferentes,
conforme suas aprendizagens e sua história de vida. O exame de Esteve, porém,
chama a atenção para a necessidade de que sejam revistos os referenciais que
serão desenvolvidos nos educandos, bem como a formação dos próprios professores
responsáveis pela realização desse desenvolvimento. Os professores precisam ter
competências específicas bem
desenvolvidas para lidar com a
educação. Sua formação precisa desenvolver competências que estejam
relacionadas não somente a
conhecimentos e técnicas,
mas à própria capacidade de lidar
com as características das instituições de ensino e das exigências que os
ambientes de vida de seus alunos vão lhes exigir como profissionais e agentes
sociais depois que terminarem sua formação e forem declarados como “sendo
aptos”. Para formar professores é preciso, inicialmente, ter clareza acerca do
que eles devem estar “aptos a fazer” para que seja possível capacitá-los a
apresentarem essas aptidões na
atuação social. E essa formação pode estar longe disso, levando os
docentes a um “adoecimento” cada vez mais perceptível a evidenciar- se nas
conseqüências das condições de trabalho dos docentes contemporâneos.
REFERÊNCIAS
Chaves, M. M. (1980). Saúde & sistemas (3. ed.).
Rio de
Janeiro: Fundação Getúlio Vargas.
Esteve, J. M. (1999). O mal-estar docente: a sala de
aula e a saúde
dos professores. Bauru: Editora
da Universidade do Sagrado Coração.
Postman, N. & Weingartner, C. (1972). Contestação:
nova fórmula de ensino (2. ed.). Rio de Janeiro: Expressão e Cultura.
Rebelatto, J. R. & Botomé, S. P. (1999).
Fisioterapia no
Brasil. (2. ed.). São Paulo: Manole.
Vasques-Menezes,
I. & Soratto,
L. (2000). Burnout
e suporte social. Em: W. Codo (Org.), Educação: carinho e trabalho (pp.
267-271) (2. ed.). Petrópolis: Vozes.
Recebido:
13.02.2003
Revisado:01.04.2003
Aceito:10.04.2003
Sobre os autores da resenha
Nádia Kienen:
Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia pela Universidade Federal
de Santa Catarina - Professora do Curso de Psicologia da Universidade do Sul de
Santa Catarina - UNISUL – Endereço para correspondência: nadiakienen@unisul.br.
Sílvio
Paulo Botomé: Professor Doutor do Departamento de
Psicologia e do Programa de Pós-Gradução em Psicologia da
Universidade
Federal de Santa Catarina - UFSC – Endereço para correspondência: botome@cfh.ufsc.br.