Os padres de várias seitas religiosas [...] temem o
avanço da ciência como as bruxas temem a chegada da luz do sol, e franzem o cenho para o arauto fatal anunciando as subdivisões dos ludíbrios que defendem.
Thomas Jefferson
O BOEING 747 DEFINITIVO
O argumento
da improbabilidade é o grande
argumento.
Em sua forma tradicional, o argumento do design é certamente o mais popular da
atualidade a favor da existência de Deus e é encarado, por um número incrivelmente grande de teístas, como completa e absolutamente convincente. Ele é realmente um argumento
fortíssimo e desconfio que
irrespondível
— mas exatamente
na direção contrária
da intenção dos teístas. O argumento da improbabilidade, empregado de forma adequada,
chega perto de provar
que
Deus não existe. O nome que dei à demonstração
estatística de que Deus quase com certeza não existe é a tática do Boeing 747 Definitivo.
O nome vem da interessante imagem do Boeing 747 e do ferro-velho, de Fred Hoyle. Não estou
certo de que Hoyle a tenha colocado no papel, mas ela foi atribuída a ele por sua colega Chandra Wickramasinghe e presume-se que seja autêntica.58 Hoyle disse que a probabilidade de a vida ter surgido na
Terra não é maior que a chance de um furacão,
ao
passar por um ferro-velho, ter a sorte de construir um Boeing 747. Outras pessoas tomaram a metáfora emprestada para
se
referir à evolução dos seres mais
complexos, onde ela tem
uma plausibilidade espúria. A chance de se montar
um
cavalo, um besouro ou
um
avestruz plenamente funcionais misturando aleatoriamente suas partes
pertence ao mesmo terreno do 747. Esse, em termos muito resumidos, é o argumento favorito dos criacionistas — um argumento que
só
poderia ter sido
pensado por uma pessoa que não entende o essencial
da
seleção natural:
alguém
que
acha que a seleção natural é uma teoria do acaso, quando — no
sentido relevante de acaso — se trata do contrário.
A apropriação equivocada
do
argumento da improbabilidade pelos criacionistas sempre assume o mesmo formato básico, e não faz nenhuma diferença se o criacionista prefere disfarçá-lo na vestimenta politicamente mais
atraente de "design inteligente".* Algum fenómeno — com frequência
uma criatura viva ou um de seus órgãos mais complexos, mas pode ser qualquer coisa desde uma molécula até o próprio universo — é corretamente enaltecido
como estatisticamente improvável. Às vezes é usada a terminologia da teoria da informação: o darwiniano é desafiado a explicar a fonte de toda a informação
da matéria viva, no sentido técnico de conteúdo de informação como medida
de
improbabi-lidade ou "valor surpresa". Ou o argumento pode invocar
o lema
banal dos economistas:
não existe almoço grátis — e o darwinis-mo
é acusado de tentar tirar alguma coisa do nada. Na realidade,
como mostrarei neste capítulo,
a seleção natural darwiniana é a única solução conhecida para o enigma insolúvel sobre a origem da informação. É a Hipótese de que Deus
Existe que tenta tirar alguma coisa do nada. Deus tenta comer seu almoço grátis e também ser o almoço. Por mais estatisticamente improvável que for a entidade que se queira explicar através da invocação de um designer, o próprio designer tem de ser no
mínimo tão improvável quanto ela. Deus é o Boeing 747 Definitivo.
O argumento da improbabilidade afirma que coisas complexas não
podem ter surgido por acaso. Mas muitas pessoas definem "surgir por acaso" como sinónimo de "surgir na ausência de um design deliberado".
Não
surpreende,
portanto, que elas achem que a improbabilidade seja uma
evidência do design. A seleção natural darwiniana
mostra quanto isso está
errado a respeito da improbabilidade biológica. E, embora o darwinismo possa
não ser diretamente
relevante para o mundo inanimado — a cosmologia, por exemplo —, ele nos conscientiza a pensar sobre áreas externas ao território
original da biologia.
O entendimento profundo do darwinismo nos ensina a desconfiar da
afirmação fácil de que o design é a única alternativa para o acaso, e nos
ensina a buscar rampas gradativas de uma complexidade
que
aumente
lentamente.
Antes de Darwin, filósofos como Hume compreenderam que a improbabilidade da vida não significa que ela necessariamente tenha sido
projetada, mas não conseguiram imaginar qual seria a alternativa. Depois de
Darwin, todos nós deveríamos desconfiar, no fundo dos ossos, da simples idéia
do
design. A ilusão do design é uma
armadilha que já nos pegou no passado, e
Darwin devia nos ter imunizado, conscientizando-nos. Quem dera ele tivesse
sido bem-sucedido com todos nós.
A SELEÇÃO NATURAL COMO CONSCIENTIZADORA
Numa nave espacial da ficção científica,
os
astronautas estavam nostálgicos: "Só imagine que lá na Terra é primavera!". Você pode não enxergar imediatamente o que há de errado, tão impregnado é o chauvinismo
inconsciente do hemisfério norte naqueles que moram lá, e até em algumas
pessoas que não moram. "Inconsciente"
é precisamente correto. E aí
que
entra a conscien-tização.
Há um motivo mais profundo que apenas um artifício
engraçadinho para o fato de que na Austrália e na Nova Zelândia é possível comprar mapas do mundo com o pólo Sul no alto. Que conscientizadores
esplêndidos
seriam esses mapas, pendurados nas paredes de nossas salas de aula do hemisfério
norte! A cada dia, as crianças seriam lembradas de que o "norte" é uma polaridade arbitrária que não detém o monopólio do "alto". O
mapa as intrigaria e as conscientizaria. Elas iriam para casa e contariam para os pais — e, aliás, entregar às crianças algo com que elas possam surpreender os pais é um dos maiores presentes que um professor pode dar.
Foram as feministas que me conscientizaram
para o poder da
conscientização. O termo "herstory"
é obviamente ridículo, no mínimo porque
o his de "history" não tem nenhuma ligação etimológica com o pronome masculino his ["dele"
— N. T.]. É tão etimologicamente
bobo quanto a
deposição,
em 1999, de uma autoridade de Washington, cujo emprego da palavra niggardly ["de forma mesquinha" — N. T.] foi considerado ofensa
racial. Mas até mesmo exemplos idiotas como "niggardly"
e "herstory" conseguiram promover a conscientização.
Quando passa nosso calafrio filológico
e paramos de dar risada, "herstory"
nos mostra a história a partir de um ponto de vista diferente. Os pronomes de género estão notoriamente na
linha de frente desse tipo de conscientização. Ele ou ela deve perguntar a si
mesmo ou a si mesma se o senso de estilo dele ou dela vai um dia permitir
que ele ou ela escrevam desse jeito. Mas, se conseguirmos deixar de lado a
infelicidade imposta à língua, isso nos conscientiza para os sentimentos de metade da raça humana. Homem, humanidade [mankind],os
Direitos do
Homem, todos os homens foram criados iguais, um homem, um voto — o inglês
parece excluir
as
mulheres com frequência demais.* Quando jovem, nunca me
ocorreu que as mulheres pudessem se sentir desprezadas por um termo como "o futuro do homem".
Nas décadas que se seguiram, todos nós fomos
conscientizados.
Mesmo aqueles que ainda usam "homem" em vez de "ser
humano" o fazem com um ar de desculpa consciente — ou de truculência, em
defesa da linguagem
tradicional,
até de forma deliberada para irritar as
feministas. Todos os participantes do Zeitgeist foram conscientizados,
até
aqueles que preferiram responder negativamente
firmando posição e redobrando a ofensa.
O feminismo mostra-nos o poder da conscientização, e quero tomar a
técnica emprestada para a seleção natural. A seleção natural não só explica a
vida toda; ela também nos conscientiza
para o poder que a ciência tem para explicar como a complexidade organizada pode surgir de princípios simplórios, sem nenhuma orientação deliberada. A plena compreensão da seleção natural incentiva-nos a avançar corajosamente por outras áreas.
* O latim e o grego clássicos eram mais bem equipados. Homo, do latim (an-thropo- em grego),
significa humano, enquanto vir (andro-) significa homem e femina (gyne-) significa mulher. Assim a
antropologia pertence a toda a humanidade, enquanto a andrologia e a ginecologia são ramos da
medicina
sexualmente excludentes.
Ela suscita nossa desconfiança, nessas outras áreas, na espécie de
alternativas falsas que um dia, no tempo pré-darwiniano, iludiu a biologia. Quem, antes de Darwin, poderia ter imaginado que algo tão aparentemente
projetado
quanto a asa de uma libélula ou o olho de uma águia é na verdade o resultado de
uma longa sequência de causas não aleatórias, mas puramente naturais?
O relato emocionante e engraçado de Douglas Adams sobre sua conversão ao ateísmo radical — ele insistiu no "radical" para que ninguém o confundisse com um agnóstico — é um testemunho do poder de conscientização do darwinismo. Espero ser perdoado pela auto-indulgência que vai ficar evidente na citação a seguir. Minha desculpa é que a conversão de Douglas por meus
livros anteriores — que não saíram para converter ninguém — inspirou-me a
dedicar à sua memória este livro — que saiu, sim, para converter! Numa entrevista, reimpressa postumamente
em
The salmon ofdoubt [O salmão da dúvida], um jornalista perguntou-lhe como ele virou ateu. Ele começou a res-
posta explicando como virara agnóstico, e continuou:
E pensei, pensei, pensei. Mas simplesmente não tinha com o que continuar, então não cheguei a uma resolução. Tinha dúvidas enormes quanto à idéia de um deus, mas não
sabia o bastante sobre nada para ter um bom modelo de qualquer outra explicação, para, bem, a vida, o universo, e tudo o mais que pudesse colocar em seu lugar. Mas insisti, e
continuei lendo e continuei pensando. Em algum ponto por volta dos trinta e poucos anos,
tropecei
na
biologia evolutiva, especialmente na forma dos livros O gene egoísta e depois O relojoeiro cego,
de Richard
Dawkins, e de repente (acho que na segunda leitura de O gene egoísta) tudo se encaixou. Era um conceito de uma simplicidade impressionante, mas
ele fez surgir,
naturalmente,
toda a infinita e desconcertante complexidade da vida. O maravilhamento que ele me inspirou
fez o maravilhamento da experiência religiosa, de que as pessoas tanto falam, parecer francamente tolo. Não hesitaria um segundo em
trocar o maravilhamento da ignorância pelo maravilhamento da compreensão.59
O conceito de impressionante simplicidade de que
ele estava
falando não tinha, é claro, nada a ver comigo. Era a teoria da evolução pela seleção natural de Darwin — a conscientizadora definitiva. Que saudade, Douglas. Você é meu convertido mais inteligente, mais engraçado, mais cabeça aberta, mais sagaz, mais alto e talvez o único. Minha esperança é que
este livro seja do tipo capaz de fazer você rir — embora não tanto quanto você me fez.
O filósofo Daniel Dennett, dono de sabedoria científica, afirmou que a
evolução contraria uma das nossas idéias mais antigas: "a
idéia de que é
necessária uma coisa superinteligente
para fazer uma coisa menor. Chamaria isso de teoria gota a gota da criação. Você nunca vai ver uma lança fazendo um fabricador de lança. Nunca verá uma ferradura fazendo um ferreiro. Nunca verá um vaso fazendo um ceramista".60 A descoberta, por Darwin, de um processo
viável que faz uma coisa tão contrária à nossa intuição é o que torna sua contribuição ao pensamento humano tão revolucionária, e tão armada com o
poder de conscientizar.
É surpreendente
quão necessário é esse tipo de conscienti-zação, mesmo na mente de cientistas excelentes em outras áreas que não a biologia.
Fred Hoyle foi um físico e cosmólogo brilhante,
mas sua compreensão equivocada
na
teoria do Boeing 747 e outros erros biológicos como sua tentativa de chamar de farsa o fóssil Archaeopteryx sugere que ele precisava ter
sido conscien-tizado por uma boa dose de exposição ao mundo da seleção na-
tural. No nível intelectual, suponho que ele compreendesse a seleção natural. Mas talvez seja necessário ser impregnado
de
seleção natural, imerso nela,
nadar nela, para que se possa realmente apreciar seu poder.
Outros cientistas nos conscientizam
de
formas diferentes. A própria ciência da astronomia
de
Fred Hoyle nos coloca em nosso devido lugar, metafórica e literalmente falando, encolhendo nossa vaidade para
que
ela caiba no minúsculo palco onde representamos nossa vida — nosso pedacinho
de
detrito de explosão cósmica. A geologia nos faz lembrar da brevidade de
nossa existência, tanto como indivíduos quanto como espécie. Ela conscien-tizou John Ruskin e provocou seu memorável
clamor em 1851: "Se pelo menos os
geólogos me deixassem em paz, eu ficaria muito bem, mas aqueles terríveis martelos! Ouço
o martelar deles
ao
fim de cada cadência dos versos da Bíblia". A
evolução faz a mesma coisa com nosso senso temporal — coisa nada
surpreendente, já que ela funciona com base na escala temporal geológica. Mas
a evolução
darwiniana, especificamente a seleção natural, faz mais que isso. Ela
destrói a ilusão do design dentro do domínio da biologia, e nos incita a
desconfiar de qualquer hipótese de design também na física e na cosmologia.
Acho que o físico Leo-nard Susskind tinha isso em mente quando escreveu: "Não sou historiador, mas vou me arriscar a dar uma opinião: a cosmologia moderna começou de verdade com Darwin e Wallace. Como ninguém antes,
eles deram explicações para nossa existência que rejeitaram completamente os agentes sobrenaturais [...] Darwin e Wallace estabeleceram um padrão não
apenas para as ciências da vida,
mas também para a cosmologia".61 Outros cientistas da área da física que estão bem longe de precisar de tal conscientiza-
ção são Victor Stenger, cujo livro Hás science found God? [A ciência encontrou Deus?] (a resposta é não) recomendo vivamente,* e Peter Atkins, cujo Creation
revisited é minha obra favorita de poesia científica em prosa.
Fico permanentemente espantado com aqueles teístas que, longe de ser
conscientizados do modo como proponho, parecem louvar a seleção natural
como "a maneira como Deus realizou a criação".
Eles dizem que a evolução pela
seleção natural seria um
modo facílimo e divertido de obter um mundo cheio
de vida. Deus não precisaria nem fazer nada! Peter Atkins, no livro
que
acabei de mencionar, leva essa linha de pensamento
a uma conclusão sensatamente
ateia quando postula um Deus hipoteticamente
preguiçoso que tenta fazer o menos possível para criar um universo que contenha a vida. O Deus
preguiçoso de Atkins é ainda mais preguiçoso que o Deus deísta do Iluminismo
do
século xvio: deus otiosus — literalmente Deus ocioso, desocupado,
desempregado,
supérfluo, inútil. Passo a passo, Atkins consegue reduzir a
quantidade de trabalho que o Deus preguiçoso tem de fazer, até que ele finalmente
fica sem nada: ele pode nem se dar ao trabalho de existir. Minha memória
chega a ouvir o resmungo sagaz de Woody Allen: "Se descobrirmos
que Deus existe, não acho que ele seja mau. Mas a pior coisa que se pode dizer
dele é que, basicamente, ele é um desperdício de potencial".
* Veja também seu livro God, the failed hypothesis: How science shows that God does not exist [Deus, a hipótese
falsa: como a ciência
mostra
que
Deus não existe],
de
2007.
COMPLEXIDADE IRREDUTÍVEL
É impossível exagerar a magnitude do problema que Darwin e Wallace solucionaram.
Eu
poderia mencionar a anatomia, a estrutura celular, a bioquímica e o comportamento de literalmente todo organismo vivo como exemplo. Mas os feitos mais impressionantes de evidente design são aqueles escolhidos a dedo — por motivos óbvios — pelos autores criacionistas, e é
com uma ironia sutil que
extraio meu exemplo de um livro cria-cionista. Life — How did it get here? [Vida: como chegou aqui], sem autor definido, mas
publicado pela Watchtower Bible and Tract Society* em dezesseis idiomas e
com 11 milhões de exemplares, é obviamente um dos grandes favoritos, porque
nada menos que seis dos 11 milhões de exemplares me foram enviados na forma de presentes não solicitados por simpatizantes do mundo inteiro.
Abrindo uma página aleatória dessa obra anónima
e tão difundida,
encontramos a esponja conhecida como cesto-de-vê-nus
(Euplectella), acompanhada por uma citação de ninguém menos que sir David Attenborough: "Quando se observa
um esqueleto complexo de uma esponja como o feito
de espículas de sílica conhecido como cesto-de-vênus, a imaginação fica desnor- teada. Como podem células microscópicas quase independentes colaborar entre si para secretar 1 milhão de agulhas de vidro e construir uma estrutura tão bela e intricada?
Não
sabemos". Os
autores da Torre
da Vigia não perderam tempo e acrescentaram:
"Mas de uma coisa nós sabemos: o acaso não deve ter sido o autor".
Não mesmo, o
acaso não deve ter sido o autor. Isso é algo com que todos concordamos. A improbabilidade estatística de
fenómenos como o esqueleto da
Euplectella é o problema central que
qualquer
teoria da vida tem de solucionar. Quanto maior a improbabilidade estatística,
menos plausível é o acaso como solução: é isso que improvável significa. Mas as soluções-candida-tas para o enigma da improbabilidade não são, como se
implica erroneamente, o design e o acaso. Elas são o design e a seleção natural.
* Sociedade da Torre da Vigia, das Testemunhas de Jeová. A tradução do livro citado não consta da
lista
de publicações disponíveis no Brasil. (N.
T.)
O acaso não é uma solução, considerando
os
níveis elevadíssimos de
improbabilidade que encontramos nos organismos vivos, e nenhum biólogo são jamais sugeriu que ele fosse. O design também não é uma solução real, como
veremos mais tarde; mas por enquanto quero continuar demonstrando o problema que qualquer teoria da vida tem de solucionar: o
problema de como escapar do acaso.
Virando a página da publicação da Torre da Vigia, encontramos
a maravilhosa planta conhecida como angélico (Aristolochia trilobata), com todas
aquelas partes que parecem ter sido elegantemente projetadas para capturar insetos, cobri-los de pólen e enviá-los para outro angélico. A intricada elegância
da
flor faz a Torre da Vigia perguntar: "Tudo isso aconteceu por acaso? Ou
aconteceu pelo design inteligente?".
Outra vez, é claro que não aconteceu por acaso. Outra vez, o design inteligente não é a alternativa adequada para o
acaso. A seleção natural não é apenas uma solução parcimoniosa, plausível e elegante; é a única alternativa viável ao acaso a ter sido sugerida. O design
inteligente padece exatamente das mesmas objeções que o acaso. Simples- mente não é uma solução plausível para o enigma da improba-bilidade
estatística. E, quanto maior a improbabilidade, mais im-plausível fica o design inteligente. Para o observador atento, o design inteligente revela-se uma duplicação do problema. Mais uma vez, isso acontece porque o/a próprio/a
designer já suscita imediatamente o problema maior de sua própria origem.
Qualquer entidade
capaz de projetar de forma inteligente uma coisa tão
improvável quanto o
angélico (ou o universo) teria de ser ainda mais improvável que um angélico. Longe de pôr fim à regressão viciosa,
Deus a exacerba
furiosamente.
Vire outra página da Torre da Vigia para um relato eloqüente sobre a
sequóia-gigante (Sequoiadendron giganteum), uma árvore pela qual tenho uma
afeição especial porque tenho uma em meu quintal — um mero bebezinho, com pouco mais de um século, mas ainda assim a árvore mais alta da vizinhança.
"Um homem diminuto de pé na base da sequôia só pode olhar para cima num
silencioso assombro com sua grandiosidade. Faz sentido acreditar que a
definição da forma desse gigante majestoso e da minúscula semente que a
contém não tenha ocorrido pelo de-sign?" Ainda outra vez, se você acha que a única alternativa ao design é o acaso, então não, não faz sentido. Mas novamente os autores omitem qualquer menção à alternativa real, a seleção natural, seja porque genuinamente não a entendem ou porque não querem entendê-la.
O processo através do qual as plantas, seja primulazinhas minúsculas ou sequóias gigantescas, obtêm energia para crescer é a fotossíntese. De novo a Torre da Vigia: '"Existem
cerca de setenta reações químicas diferentes envolvidas na fotossíntese', disse um biólogo. 'É um fato realmente milagroso.' As plantas verdes
já foram chamadas de as 'fábricas' da natureza — belas, silenciosas,
não
poluentes, produzindo oxigénio, reciclando a água e alimentando o mundo. Elas simplesmente apareceram por acaso? Pode-se acreditar mesmo nisso?". Não, não se pode; mas
a repetição de um exemplo atrás do outro não nos leva a lugar ne-
nhum. A "lógica"
criacionista é sempre a mesma. O design é a única alternativa que
os
autores conseguem imaginar para o acaso. Portanto um projetista deve ser o
autor. E a resposta da ciência para essa lógica defeituosa também é sempre a mesma. O design não é a única alternativa ao acaso. A seleção natural é uma alter-
nativa melhor. Na verdade,
o design não é nem mesmo uma alternativa de verdade, porque
suscita um problema maior do que o que solucionou: quem
projetou o projetista? Tanto o acaso como o design fracassam como soluções para o problema da improba-bilidade estatística, porque um deles é o problema, e o outro
retorna a ele. A seleção natural é a solução verdadeira. É a única solução
viável já sugerida. E não é apenas uma solução viável,
é uma solução de incrível poder e elegância.
O que é que faz a seleção natural ser bem-sucedida como solução para o problema da improbabilidade, para o qual o acaso e o design fracassam já de saída?
A resposta é que a seleção natural é um processo cumulativo, que divide o
problema da improbabilidade em partículas pequenas. Cada uma das
partículas é ligeiramente improvável, mas não definitivamente. Quando grandes números desses fatos ligeiramente
improváveis são reunidos
em série,
o resultado final do acúmulo é mesmo improba-bilíssimo, improvável o
bastante
para estar muito além do alcance do acaso. São esses produtos finais
que dão forma aos objetos do argumento cansativamente reciclado pelos
criacionistas. O criacionista não enxerga o cerne da questão,
porque ele (pelo menos uma vez, as mulheres não deviam se importar por serem excluídas pelo
pronome) insiste em tratar a génese da improbabilidade estatística como um evento único e isolado. Ele não entende o poder do acúmulo.
Em A escalada do monte Improvável, manifestei essa questão na forma de uma parábola. Um lado da montanha é um despenhadeiro,
impossível de
escalar, mas o outro lado é uma encosta de subida amena até o topo. No topo
está um dispositivo complexo, como um olho ou um flagelo bacteriano. A idéia
absurda
de
que tamanha complexidade possa se montar sozinha, esponta-
neamente, é simbolizada por um pulo só, do pé do penhasco até o cume. A evolução, pelo contrário, vai por trás da montanha e pega a subida amena até
o topo: fácil! O princípio da comparação entre escalar a encosta amena e pular
pelo
lado do precipício é tão simples que ficamos tentados a nos espantarmos com o fato de ter demorado tanto para um Darwin aparecer e descobri-lo. Quando ele fez isso, quase dois séculos haviam se passado desde o annus mirabilis de Newton, embora sua realização pareça, pensando bem, ter sido mais
difícil que a de Darwin.
Outra metáfora popular para a improbabilidade extrema é o segredo
de um cofre de banco. Teoricamente, um ladrão de banco pode ter sorte e conseguir acertar a combinação dos números por acaso. Na prática, o segredo do cofre é projetado com um tanto de improbabilidade suficiente para aproximar
essa hipótese do impossível — quase tão improvável quanto o Boeing 747 de Fred Hoyle. Mas imagine uma tranca de segredo mal projetada, que fosse dando pequenas dicas de forma progressiva — o equivalente
ao
"está quente" da
brincadeira das crianças. Imagine que, quando cada um dos discos se aproximasse
da
posição correta, a porta do cofre abrisse um pouquinho, e deixasse sair um
pouco de dinheiro. O ladrão ia pegar a bolada rapidinho.
Os criacionistas que tentam usar o argumento da improbabilidade a seu favor sempre assumem que a adaptação biológica é uma questão de tudo —
acertar na loteria — ou nada. Outro nome para essa falácia é "complexidade
irredutível". O
olho vê ou não vê. A asa voa ou não voa. Assume-se que não existem
intermediários úteis. Mas isso está simplesmente errado. Intermediários assim
abundam na prática — exatamente o que deveríamos esperar na teoria. O
segredo do cofre da vida é um mecanismo de "está quente, está frio". A vida real
busca as encostas de subida amena por trás do monte Improvável, enquanto os
criacionistas enxergam apenas o assustador precipício da frente.
Darwin dedicou um capítulo inteiro de A origem das espécies às "Objeções
apresentadas
contra a teoria da descendência
com modificações",
e é razoável dizer que
esse curto capítulo previu e descartou cada uma das supostas objeções propostas desde então até os dias atuais. As objeções mais formidáveis são os "órgãos de extrema perfeição e complexidade"
de
Darwin, que às vezes são
erroneamente descritos como "de complexidade irredutível". Darwin destacou o olho como um problema especialmente desafiador: "Supor que o olho, com todos os seus inimitáveis artifícios para ajustar o foco a várias distâncias, para
admitir várias quantidades de luz e para corrigir aberrações esféricas e cromáticas,
tenha sido formado pela seleção natural parece, confesso abertamente, o grau
mais elevado de absurdo". Os criacionistas
citam essa frase alegremente, sem
parar. Nem é necessário dizer que eles nunca citam sua sequência. A confissão exageradamen-te aberta de Darwin revela-se um artifício de retórica. Ele estava atraindo seus oponentes para que o golpe, quando viesse, os atingisse em cheio.
O golpe, é claro, é a explicação simples de Darwin sobre como de fato o olho evoluiu gradativamente. Darwin pode não ter usado o termo "complexidade irredutível", ou a "gradação suave para subir o monte Improvável", mas de certo
compreendia o princípio de ambos.
"Para que serve meio olho?" e "Para que serve meia asa?" são exemplos do argumento da "complexidade
irredutível"........
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