terça-feira, 10 de maio de 2011

SKINNER, DEUS E O EU ( parte1)





O EU INICIADOR
B. F. Skinner
Há lugar numa análise científica do comportamento para um eu iniciador, originador,criador? Tendo prescindido de Deus como criador, a ciência deve prescindir também da imagem de Deus chamada Homem? Sentimos necessidade de um deus criador, porque vemos o mundo, mas vemos muito pouco dos processos que geraram sua existência; vemos o produto, mas não a sua produção. Talvez, por vermos o comportamento humano, mas vermos muito pouco do processo através do qual ele se desenvolve, é que sentamos necessidade de um eu criador. Quanto ao comportamento, todavia, nós dispomos de outra evidência: podemos ver ou observar introspectivamente nossos próprios corpos enquanto nos comportamos e é possível que o que vemos seja o processo de criação. Chame-o de mente ou de vontade. Somente retrospectivamente é que atribuímos a criação do mundo a uma Mente ou Vontade – a um deus feito à imagem do Homem?
Não importa, porque a ciência modificou tudo isso. Os astrônomos talvez não tenham explicações para o big bang, mas estão oferecendo uma explicação cada vez mais plausível sobre a formação dos elementos químicos e sobre sua distribuição no espaço. A Química sugere explicações sobre os processos pelos quais seres vivos poderiam ter emergido de coisas não-vivas, e os biólogos explicam a origem das espécies, incluindo o homo sapiens, através da seleção natural. Resta pouco para um criador fazer.
O comportamento também passou a ser parte do objetivo de uma análise científica. É o produto de três tipos de seleção, o primeiro dos quais, a seleção natural, é do campo da etologia. O segundo, o condicionamento operante, é do campo da análise do comportamento. O terceira, a evolução das contingências de reforçamento sociais, que chamamos de culturas, explica os amplos repertórios de comportamento característicos da espécie humana.
Os termos que usamos para designar um indivíduo que se comporta dependem do tipo de seleção. A seleção natural nos dá o organismo; o condicionamento operante, a pessoa; e, como discutiremos, a evolução de culturas nos dá o eu. Um organismo é mais do que um corpo; é um corpo que faz coisas. Ambas as palavras, órgão e organismo, são etimologicamente ligadas a trabalho. O organismo é o executor. Pessoa deriva da palavra usada para designar as máscaras com as quais os atores recitavam seus papéis nos teatros grego e romano. A máscara identificava o papel que o ator desempenhava; ela o marcava como um personagem. Usando diferentes máscaras, ele podia desempenhar diferentes papéis. As contingências de reforçamento operante têm efeitos muito semelhantes. A partir do organismo que se desenvolveu através da seleção natural, elas constroem os repertórios comportamentais chamados pessoas. Diferentes contingências constroem diferentes pessoas, possivelmente dentro da mesma pele, como o demonstram os clássicos exemplos de personalidades múltiplas.
Num longo capítulo chamado “Autocontrole” (Self-control), em Ciência e Comportamento Humano (1953), utilizei a palavra eu (self) da mesma maneira que hoje usaria a palavra pessoa. Revi técnicas através das quais uma pessoa manipulava variáveis ambientais das quais seu comportamento era função e distingui entre o eu controlador e o eu controlado, definindo-os como repertórios de comportamento. Isso, porém, foi há trinta anos, e a teoria behaviorista avançou. Hoje se pode fazer uma distinção mais clara entre pessoa e eu: uma pessoa, enquanto repertório de comportamento, pode ser observada pelos outros; o eu, como um conjunto (set) de estados internos que o acompanham, é observado somente através de sentimento ou introspecção.
Vários problemas de utilização devem ser mencionados. Precisamos usar a palavra eu (self) como pronome reflexivo (me, mim em português), porque existem outras pessoas
no mundo. O eu que eu vejo num espelho ou num vídeo é a pessoa que os outros vêem. “Eu mesmo (myself) o fiz” não é muito diferente de fui eu quem o fez. O Third New International Dictionary (Webster, 1981) contém cerca de 500 entradas iniciadas com self e em algumas delas a palavra é meramente reflexiva.
Não é esse, entretanto, o eu que está sendo considerado aqui. Somente sob tipos especiais de contingências verbais é que respondemos a certos aspectos do nosso corpo. Ao fazer o retrospecto de uma ocasião inusitada, posso dizer: “Eu era uma pessoa diferente”, mas outros poderiam dizer a mesma coisa. “Eu não era eu mesmo”, porém, sugere que eu me sentia como uma pessoa diferente. O eu é o que a pessoa sente a respeito de si própria.
É o eu que conhecemos quando seguimos o conselho do oráculo de Delfos “Conhece-te a ti mesmo”, e é o eu que modificamos quando, em resposta à ordem “Comporte-se”, fazemos mais do que nos comportarmos de maneira diferente.
Existe um outro problema de uso. A língua inglesa desenvolveu-se numa época em que, de um modo geral, acreditava-se que o comportamento se originava dentro do indivíduo. As pessoas sentem (através dos órgãos dos sentidos) o ambiente e atuam sobre ele. Numa análise comportamental, o ambiente atua primeiro, de uma entre duas maneiras possíveis. Como conseqüência, reforça o comportamento e, assim, dá origem a um operante. Como contexto (setting), elicia ou evoca o comportamento.
Poucas palavras em inglês, certamente nem pessoa nem eu, se encaixam em tal versão comportamental. Somos mais prontamente compreendidos quando perguntamos porque as pessoas observam certas condições de seus corpos, do que quando perguntamos porque as condições evocam auto- observação. A versão tradicional dificilmente pode ser evitada no uso prático ou em paráfrase de expressões técnicas, muito embora, dessa maneira, o eu permaneça como iniciador, que é o que estamos questionando.
Nos tópicos que se seguem, veremos uma interpretação diferente de vários exemplos comuns.
CONTINUA.........