Roberto Henrique
Amorim de Medeiros
Psicólogo
e aluno do Curso de Especialização em Psicoterapia
Individual Psicanalítica , da Clínica de Atendimento
Psicológico da UFRGS
Este
artigo aborda a Psicanálise dentro de seu contexto histórico-científico,
discute questões sobre sua cientificidade e observa algumas conseqüências
decorrentes dos rumos tomados pelo saber psicanalítico durante o último século.
Ao final, é realizada uma articulação conclusiva sobre os fatores que intervêm
no contexto proposto, levando em conta a necessidade ou não de a Psicanálise adquirir
o estatuto de Ciência.
Transcorria
o séc XV e o conhecimento humano, até então, era baseado apenas nas tradições
sociais da época e, principalmente, na filosofia religiosa da Igreja Católica.
Foi
apenas ao final desse mesmo século, com os acontecimentos que solaparam a visão
tradicional, como as guerras, os descobrimentos pela navegação e as reformas
sociais, que o homem sentiu a necessidade de apoiar seu conhecimento em novos
alicerces. Os antigos estavam por demais insuficientes. Como dizia Aristóteles,
a tradição não é nociva e sim a comodidade.
Essa
necessidade premente teve como seu resultado maior, em decorrência da
disciplina do método, a formulação do cogito cartesiano.
Nele, assume-se, entre outras coisas, que o espírito seria mais fácil de conhecer
do que o corpo, num claro processo de priorização da subjetividade. A verdade
só poderia ser seguramente atingida separando-se os sentidos de seus afetos e
paixões, isto é, pela razão.
É
por essa via que aquilo que conhecemos hoje em dia como Ciência se estruturou e
quando o séc XIX chegou ao seu final, o dr. Sigmund Freud elaborava a
construção de um novo conhecimento respeitando as mesmas regras e noções
inauguradas por Descartes. A intenção de Freud de criar uma nova disciplina
científica já era clara nessa época.
No
entanto, o novo conhecimento professado pelo médico vienense, embora de acordo
com uma infinidade de outros pensadores que voltavam a sua atenção para os
fenômenos que iriam se chamar inconscientes, trazia o problema de como tornar inteligível
ou palpável os seus conceitos, respeitando, assim, o paradigma científico.
O
saber filosófico do séc XIX, norteado pelo Romantismo, já trazia através de
alguns pensadores, as principais noções que seriam utilizadas posteriormente
por Freud na construção daquilo que se chamou Psicanálise. Esse contexto, no
qual estava inserido Freud e a sua busca pela cientificidade de sua teoria, fez
com que se iniciasse sua relação de amor e desprezo com a filosofia. Em sua
obra e biografia, podemos encontrar duas facetas do autor. Aquele Freud que,
embevecido com as maravilhas do conhecimento humano, faz um resumo de filosofia
básica para sua esposa é o mesmo Freud que se declara um ignorante nessa área
ou que desconhece teorias filosóficas em estreito acordo com as suas.
A
busca, diria frenética, de tornar a Psicanálise uma ciência parece justificar
essas e outras atitudes. Freud irá escrever o Projeto, texto no qual, através do modelo
mecanicista da Física - a ciência com C maiúsculo - tentará expor seus
conceitos. Com sua obra, Freud tenta demonstrar empiricamente o que a filosofia
do final do século passado abordava intuitivamente.
Ao
que parece, cem anos passados, Freud entregou-se a uma tarefa complicada ao
extremo. Com o desenvolvimento de sua teoria através de suas observações
clínicas, o caráter fisicalista que tentava impor à Psicanálise foi-se tornando
insuficiente. Embora nunca tendo demonstrado uma rendição ao fato de que seus
modelos físicos jamais poderiam dar conta de toda especificidade da ordem
psíquica, Freud vê-se obrigado a escrever artigos que chamou metapsicológicos. Porém, nem nesses artigos e muito
menos neles, encontramos sequer uma renúncia ao modelo fisicalista, embora isso
conviva com afirmações como as concernentes à pulsão, que se situa entre o
físico e o psíquico, constituindo-se num postulado no mínimo estranho à ciência
como tal.
O
que emerge de toda essa situação é o conflito resultante do desejo
cientificista de Freud e de sua impossibilidade que deriva da própria
especificidade do conhecimento que ele construiu.
Apesar
de tudo, a Psicanálise sobreviveu a todas as críticas, mas a vontade inicial do
mestre Freud parece ter encontrado morada nos seus seguidores. Por outro lado,
epistemólogos também não pararam de elaborar teorizações e argumentos para a
questão da validação do saber psicanalítico como ciência. Modestamente, é digno
de nota que até eu me encontro em tarefa semelhante no momento em que escrevo
este texto.
Se
a Psicanálise não é uma ciência, pelo menos deve ser algo muito curioso e
instigante, longe de ser um absurdo. Prova disso é exatamente o fato de nunca
ser esquecida essa discussão. De um lado encontramos os positivistas e seus preceitos de que uma ciência deve
ter proposições claras onde se possa predizer todo tipo de ocorrência de
fenômenos ou, então, a idéia popperiana de que uma teoria, para ser científica,
deveria prever em que momento poderia ser refutada. Todos esses e outros
aspectos não são observáveis em Psicanálise.
Do
outro, encontramos uma infinidade de seguidores de Freud, inclusive Lacan,
tentando contra argumentar em favor da concepção de que a Psicanálise é uma
ciência.
Acerca
dessa tentativa dos psicanalistas, vemos a teoria freudiana receber novas
leituras. Do mentalismo de Freud passa-se ao estruturalismo lacaniano. Da
concepção pulsional passa-se à paradigmática e todas, elas em algum momento,
tocam na delicada questão que aqui se coloca afirmando uma possível solução
para a mesma. Porém, essa solução é sempre da mesma ordem e os discípulos de
Freud parecem inexoravelmente presos às mesmas aspirações do mestre em
detrimento do fato de que, seja qual forem as epistemologias que tratam da
cientificidade da psicanálise, seja qual for o dispositivo que usem para a
validação de uma teoria como Ciência, nada poderá conceber a teoria freudiana
como uma disciplina científica.
O
positivismo da ciência vigente jamais poderia conviver com o que se chama de desvio
especulativo da Psicanálise que deu origem a idéias como a da pulsão, id, ego e
superego. O freqüente uso de metáforas impediria uma delimitação de seus usos e
o próprio fato de que qualquer fenômeno pode ser referido a um construto
psicanalítico vem provar que a Psicanálise não tem um conteúdo empírico
próprio. A a-falseabilidade da teoria freudiana onde qualquer resultado
contraditório pode ser interpretado segundo a própria teoria e a
incomensurabilidade do modelo energético pulsional engendrado por Freud são
alguns dos tantos exemplos que colocam barreiras à intenção científica da
Psicanálise.
Porém,
como disse ao iniciar este texto, minha proposta não é - e nem poderia ser,
dado o grau de complexidade e dimensão deste trabalho - avaliar os prós e contras
da questão que aqui é abordada, mas de trazer uma opinião que passo a descrever
neste momento.
Em
primeiro lugar, observaria o seguinte: diante do que se conclui até o momento,
é verdade que, através do estudo epistemológico, a Psicanálise não poderia em
nenhuma hipótese adquirir o status de Ciência, por seu objeto de estudo, sua
forma etc. No entanto, gostaria de chamar atenção ao fato de que, até hoje, a
Ciência - com o c maiúsculo - pouco disse ou explicou os
fenômenos psíquicos, que também não podem ser simplesmente negados. Por outro
lado, a Psicanálise, teoria que mais se aproximou do conhecimento científico
nesta área, é bem verdade, também não logra êxito satisfatório nessa tarefa.
Até
os dias de hoje, as já citadas releituras da teoria de Freud estão cada vez
mais em voga e, se não alcançam totalmente seu objetivo de resgate, é inegável
que o que conseguiram, entre outras coisas, foi um progressivo esvaziamento do
ser - que com o conceito de divisão
do sujeito fica
impossibilitado de qualquer conhecimento sobre sua essência, sendo ali mesmo onde não pode ser, como costumava dizer Lacan -e um
deslocamento do inconsciente, pedra de toque freudiana, para um plano secundário
no momento em que é evidenciado apenas seu aspecto patológico ou de material
recalcado.
Diante
disso, uma conclusão, pelo menos, parece ser possível. É justamente o fato de
que, talvez, a Ciência, com suas peculiaridades, suas normas e convenções, não
pode dar conta de fenômenos de uma natureza psíquica em sua totalidade. Não
esqueço aqui de todos os avanços na área biológica da neurofisiologia que
ocorreram no último século e que vieram lançar luz sobre muitas questões
referentes à dinâmica cerebral dos neurotransmissores e à própria doença
mental. Entretanto, o excesso de generalizações e reducionismos que a concepção
biologicista traz acaba tornando esse conhecimento igualmente insuficiente
diante da riqueza das especificidades com que nos deparamos quando tratamos do
funcionamento psíquico humano.
Caricaturalmente
poder-se-ia dizer que, desde que a filosofia cartesiana priorizou a razão, todos dali em diante passaram a querer
tê-la de maneira exclusiva. No que se refere ao psiquismo cada saber reclama para
si a verdade. Como já foi dito, os avanços atuais das neurociências,
principalmente na área dos psicofármacos, trazem argumentos fortíssimos que
desequilibram a balança da razão para seu lado. No outro, infelizmente, vemos a
Psicanálise - e com ela a Psicologia mantendo-se apenas porque a biologia não
demonstra ser completamente eficaz. Chega-se à mesma questão do parágrafo
anterior.
Por
que isso acontece? Certamente seria difícil responder em poucas linhas. Mas, a
título de questão a ser refletida com maior profundidade em outro momento, não
seria plausível pensar que a Psicanálise, quando da tentativa de assemelhar-se
a um paradigma científico que servia muito bem às ciências ditas naturais,
perdeu aquilo que poderia ser sua especificidade no entendimento de algo tão
inexato como a psiquê? Que preço terá pago Freud - e com ele todos os
psicanalistas - pela sua vontade narcísica de ser o inventor de um novo saber
científico? Muito poderia ser especulado acerca da primeira interrogação e
talvez a teoria de Adler fosse útil para pensarmos a segunda.
De
qualquer forma, quando considero a Ciência vigente, cartesiana por excelência e
por séculos a fio, novamente me vem à mente a velha afirmação de Aristóteles
sobre a tradição. O quanto talvez não estejamos acomodados à tradição
científica e fechamos os olhos a fenômenos que acomodadamente tachamos de
místicos e deixamos de lado, ao passo que parece que sabemos cada vez menos
sobre nós mesmos.
Penso
que a Psicanálise não ganharia em nada sendo uma Ciência. Por vezes até
perderia. O fato de não ser uma ciência jamais a destituirá de um significado
ou de constituir um saber pertinente e que produz resultados na clínica.
Se
é a psicanálise um saber, uma hermenêutica, uma ética ou apenas uma técnica,
isso pouco importa, principalmente se levarmos em conta o motivo pelo qual ela
foi criada um dia. O paciente que chega ao psicólogo ou psicanalista vem em
busca de um alívio, seja qual for a ordem. E, nesse momento, o que interessa é
que o método psicanalítico seja útil e se mostre de alguma valia.
Mesmo
levando em consideração o valor da motivação gerada pelo ideal cientificista na
pesquisa e na obra de Freud, volta-me a questão do preço pago pela Psicanálise
na tentativa frustrada de adaptação à ciência vigente - vide o Projeto, obra inacabada. Frente a fatos como
esse e os que se seguiram após Freud, parece poder ser útil se pensar em uma
mudança de foco do objeto psicanalítico ou, mais radicalmente, a adoção de um
novo paradigma que permita um livre trânsito das observações igualmente
empíricas na construção de novas teorizações, longe das amarras do método
científico atual.
Talvez,
seria realmente demasiado esperar que Freud - que com sua teoria sexual já
havia balançado as bases morais da sociedade da época - fosse, ainda, polemizar
com os defensores do conhecimento científico ao propor essa mudança de
paradigma logo de início.
A
Psicanálise não se tornou uma Ciência e Freud hoje em dia talvez nem se
importasse mais com isso, pois atualmente ela ocupa um lugar respeitado em seu
meio.
Por que ainda nos
importamos ?
Referências
bibliográficas
Assoun,
P.L. (1978) Freud, a filosofia e os filósofos. Rio de Janeiro: Francisco Alves.
Birman,
J. (1994) Os impasses da cientificidade no discurso freudiano. In: Psicanálise,
ciência e cultura.Rio de Janeiro:Zahar.
Freud,
S. Pulsões e destinos da pulsão (1915). In: Obras completas; Edição standard
brasileira. Rio de Janeiro: Imago. v. 14.
Palombini,
A. (1996) Fundamentos para uma crítica da epistemologia da psicanálise.
Dissertação de Mestrado em Filosofia, UFRGS, defendida em julho de 1996; Porto
Alegre - Brasil.