sábado, 13 de agosto de 2011

O PENSAMENTO DE RUSSELL PARA ALBERT EINSTEIN

















B. RUSSELL E O PENSAMENTO FILOSÓFICO
Albert Einstein

Ao ser convidado pela redação para escrever alguma coisa sobre Bertrand Russell, minha admiração e estima por ele me impeliram a aceitar imediatamente. À leitura de suas obras devo inúmeros momentos de satisfação, o que — exceção feita de Thorstein Veblen — não posso dizer de nenhum outro escritor científico contemporâneo. Mas bem depressa verifiquei que era mais fácil prometer do que cumprir. Ora, prometi escrever algumas idéias sobre Russell filósofo e teórico do conhecimento. E quando comecei a redigir, cheio de confiança, verifiquei logo em que terreno escorregadio me aventurava.


Porque sou um escritor inexperiente, só me arriscando com prudência até aqui a falar sobre física. Para o iniciado, portanto, a maior parte de meu artigo poderá parecer pueril; reconheço-o de antemão. Mas um pensamento me consola. Quem fez a experiência de pensar em outro domínio sobrepuja sempre aquele que não pensa de modo algum ou muito pouco.
Na história da evolução do pensamento filosófico através dos séculos, uma questão vem sempre em primeiro lugar: que conhecimentos o pensamento puro, independente das impressões sensoriais, pode oferecer? Será que tais conhecimentos existem? Do contrário, que relação estabelecer entre nosso conhecimento e a matéria bruta, origem de nossas impressões sensíveis? A estas questões e algumas outras estreitamente relacionadas corresponde uma desordem de opiniões filosóficas, absolutamente inimagináveis. Ora, nesta progressão de esforços meritórios, mas relativamente ineficazes, uma linha indestrutível vai se traçando e se reconhece: um crescente ceticismo manifesta-se diante de qualquer tentativa de procurar explicar pelo pensamento puro “o mundo objetivo”, o mundo dos “objetos” oposto ao mundo simplificado das “representações e dos pensamentos”. Observemos aqui que, para um filósofo clássico, as aspas (“ ”) são empregadas para indicar um conceito fictício, que o leitor momentaneamente aceita, apesar de refutado pela crítica filosófica.
A crença elementar da filosofia em sua gênese reconhece no pensamento puro a possibilidade de descobrir todo o conhecimento necessário. Era uma ilusão, cada qual pode compreendê-lo com facilidade, se esquecer provisoriamente das aquisições ulteriores da filosofia e da ciência física. Por que se admirar, se Platão concede à “Idéia” uma realidade superior à dos objetos empiricamente experimentados? Spinoza, Hegel inspiram-se no mesmo sentimento e raciocinam fundamentalmente da mesma forma. Poder-se-ia quase fazer a pergunta: sem esta ilusão será possível no pensamento filosófico inventar algo de grandioso? Mas deixemos de lado esta interrogação.
Diante da ilusão, bastante aristocrática, do poder de percepção ilimitada do pensamento, existe outra ilusão bem plebéia, o realismo ingênuo, segundo o qual os objetos “são” a pura verdade de nossos sentidos. Ilusão que ocupa a atividade diária dos homens e dos animais. Na origem, as ciências se interrogam deste modo, sobretudo as ciências físicas.
As vitórias sobre as duas ilusões nunca se separam. Eliminar o realismo ingênuo é relativamente fácil. Russell define de forma muito característica este momento do pensamento na introdução a seu livro An inquiry into Meaning and Truth.
“Começamos todos com o realismo ingênuo, quer dizer, com a doutrina de que os objetos são assim como parecem ser. Admitimos que a erva é verde, que a neve é fria e que as pedras são duras. Mas a física nos assegura que o verde das ervas, o frio da neve e a dureza das pedras não são o mesmo verde, o mesmo frio e a mesma dureza que conhecemos por experiência, mas algo de totalmente diferente. O observador que pretende observar uma pedra, na realidade observa, se quisermos acreditar na física, as impressões das pedras sobre ele próprio. Por isto a ciência parece estar em contradição consigo mesma; quando se considera extremamente objetiva, mergulha contra a vontade na subjetividade. O realismo ingênuo conduz à física, e a física mostra, por seu lado, que este realismo ingênuo, na medida em que é consequente, é falso. Logicamente falso, portanto falso.”
À parte sua perfeita formulação, estas linhas expressam algo em que eu jamais pensara. Para um olhar superficial, o pensamento de Berkeley e de Hume parece o oposto do pensamento científico. Mas o enunciado acima de Russell revela uma relação. Berkeley insiste sobre o fato de que não percebemos diretamente os “objetos” do mundo exterior por nossos sentidos, mas que os órgãos de nossos sentidos são afetados por fenômenos ligados como causa à presença dos “objetos”. Ora, esta reflexão suscita a convicção por já raciocinar como a ciência física. Se não se tem bastante confiança na maneira de pensar física, mesmo em suas grandes linhas, não há razão alguma para impor qualquer coisa entre o objeto e o ato de ver que isola o sujeito em relação ao objeto e torna problemática “a existência dos objetos”.
A mesma técnica de reflexão em ciência física e os resultados assim obtidos revolucionaram a tradicional possibilidade de compreender os objetos e suas relações pelo lado único do pensamento especulativo. Aos poucos, se firmava a convicção de que todo conhecimento sobre os objetos era inexoravelmente  uma  transformação  da  matéria  bruta  oferecida  pelos  sentidos.  Sob  esta apresentação geral (formulada intencionalmente em termos vagos), esta proposição é aceita comumente. A convicção repousa assim sobre dupla prova: a impossibilidade de adquirir conhecimentos  reais  pelo  puro  pensamento  especulativo,  mas  sobretudo  a  descoberta  dos progressos dos conhecimentos pela via empírica. Primeiro, Galileu e Hume justificaram este princípio com uma perspicácia e uma determinação totais.
Hume bem compreendia que conceitos, julgados essenciais por nós — por exemplo, a relação causal —, não podem ser obtidos a partir da matéria fornecida pelos sentidos. Esta compreensão o levou ao ceticismo intelectual diante de qualquer conhecimento. Quando se lêem suas obras, fica-se espantado de que depois dele tantos filósofos, em geral bem considerados, tenham podido redigir tantas páginas tão confusas e encontrado leitores gratos. Contudo Hume marcou com sua influência os seus melhores sucessores. E nós o reencontramos na leitura das análises filosóficas de Russell: o estilo preciso e a expressão simples são os mesmos de Hume.
O homem aspira profundamente ao conhecimento certo. E por esta razão, o sentido da obra de Hume nos comove. A matéria bruta sensível, única fonte de nosso conhecimento, nos modifica, nos faz crer, esperar. Mas não pode conduzir-nos ao saber e à compreensão de relações que revelam leis. Kant então propõe um pensamento. Sob a forma em que foi apresentada é indefensável, porém marca um nítido progresso para resolver o dilema de Hume. “O empírico, no conhecimento, jamais é certo” (Hume). Se queremos conhecimentos certos temos de baseá-los na razão. Tal é o caso da geometria, tal o do princípio de causalidade. Estes conhecimentos, mais alguns outros, formam uma parte de nosso instrumento-pensamento. Por conseguinte não devem ser obtidos pelos sentidos. São conhecimentos a priori.
Hoje todo o mundo sabe, evidentemente, que os famosos conhecimentos nada têm de certo, nada de intimamente necessário, como Kant acreditava. Mas Kant colocou o problema sob o ângulo desta constatação. Temos um certo direito de pensar conceitos que a matéria experimental sensível não pode dar-nos, se permanecermos no plano lógico em face do mundo dos objetos.
Penso que é preciso ainda superar esta posição. Os conceitos que aparecem em nosso pensamento e em nossas expressões linguísticas são — do ponto de vista lógico — puras criações do espírito e não podem provir indutivamente de experiências sensíveis. Isto não é tão simples de admitir porque unimos conceitos certos e ligações conceptuais (proposições) com as experiências sensíveis, tão profundamente habituais que perdemos a consciência do abismo logicamente insuperável entre o mundo do sensível e o do conceptual e hipotético.
Por isto, incontestavelmente, a série de números inteiros marca uma invenção do espírito humano, um instrumento criado por ele para facilitar e ordenar algumas experiências sensíveis. Não existe possibilidade alguma de tirar este conceito da própria experiência sensível. Escolho de propósito a noção do número porque pertence ao pensamento pré-científico e seu aspecto operatório é facilmente identificável aqui. Mas quanto mais nos aproximamos dos conceitos elementares na vida cotidiana, tanto  mais  o  peso  de  hábitos  arraigados nos  embaraça para  reconhecermos o conceito como criação original do espírito. Assim se elaborou uma concepção fatal e gravemente errônea para a compreensão das relações reais e imediatas: os conceitos se constituiriam a partir da experiência e em seguida da abstração, mas com isto perdem uma parte de seu conteúdo. Desejo mostrar por que esta concepção me parece tão errônea.
Se aceita a crítica de Hume, formula-se logo a idéia de que todo conceito ou toda hipótese devem ser rejeitados do espírito como “metafísica”, por não serem extraídos da matéria bruta sensível. Porque todo pensamento só recebe seu conteúdo material através da relação com o mundo sensível. Julgo perfeitamente exata esta idéia; em compensação, uma construção que sistematiza dessa forma o pensamento me parece falsa. Pois esta pretensão lógica, levada ao extremo, excluiria inevitavelmente qualquer pensamento como metafísico.
Para que o pensamento não degenere em metafísica, quer dizer em parolice, é preciso que um número suficiente de proposições de um sistema conceptual esteja ligado de modo exato às experiências sensíveis e que o sistema conceitual, na função essencial de ordenar e de sintetizar o vivido sensível, revele a maior unidade, a maior economia possível. Afinal, o “sistema” exprime um livre jogo  (lógico) de  símbolos por  meio  de  regras  (lógicas) arbitrariamente dadas. De  igual maneira, tudo isto é válido para traduzir o cotidiano; e até para pensar as Ciências, sob uma forma mais consciente e mais sistemática.
Aquilo que vou dizer torna-se então mais claro: Hume, por sua crítica lúcida, possibilita um progresso decisivo da filosofia. Mas causa, sem responsabilidade de sua parte, um real perigo, porque esta crítica suscita um “medo da metafísica” errado, por realçar um vício da filosofia empírica contemporânea. Este vício corresponde ao outro extremo da filosofia nebulosa da antiguidade, quando ela pretendia poder dispensar os dados sensíveis, ou até mesmo desprezá-los.
Apesar de minha admiração pela perspicaz análise apresentada por Russell em Meaning and Truth, tenho receio de que também aí, o espectro do medo metafísico haja causado alguns estragos. Esta angústia me explica, por exemplo, o papel da razão para conceber a “coisa” como um “feixe de qualidades”, qualidades que devem ser abstraídas da matéria pura sensível. Este fato (duas coisas devem ser consideradas uma única e a mesma coisa se se correspondem respectivamente em suas qualidades) nos obriga a avaliar as relações geométricas dos objetos como qualidades. (De outro modo, seríamos obrigados, de acordo com Russell, a declarar serem “a mesma coisa” a Torre Eiffel em Paris e a torre de Nova Iorque.) Diante disto, não vejo perigo “metafísico” em acolher o objeto (objeto no sentido da física) como um conceito independente no sistema ligado à estrutura espacial- temporal que lhe pertence.
Levando em conta esses esforços, estou contente ainda por descobrir, no último capítulo, que não se pode dispensar a “Metafísica”. Minha única crítica esclarece a má consciência intelectual que se sente através das linhas.


POSTAGEM: HILTON CAIO