terça-feira, 16 de agosto de 2011

A VIOLÊNCIA URBANA: APLICA-SE A ANÁLISE DA COERÇÃO ?

























Maria Amália P. A. Andery e Tereza Maria de A. P. Sério

Conferência apresentada no IV Encontro da Associação Brasileira de Psicoterapia e Medicina Comportamental (ABPMC) realizada em Campinas em 1995.
Não temos a pretensão aqui de apresentar o resultado de um trabalho sistemático de coleta, análise e interpretação de dados. Este artigo é fruto de um olhar mais atento para o fenômeno da violência, que se fortaleceu a partir do momento que decidimos dar um curso eletivo na PUC-SP sobre "Coerção", em 1993, baseado no livro de Murray Sidman (Coerção e suas implicações, 1995, Ed.Psy). Uma versão preliminar deste trabalho, já foi apresentada na Semana de Psicologia da PUC-SP, em 1993.


Desde então, temos comentado o assunto, recortado notícias de jornal e, de algum modo, nos preocupado com a questão de como a AEC (Análise Experimental do Comportamento) poderia servir de instrumento de análise e de ferramenta de intervenção.
Nossa análise não é inédita, devemos muito a duas pessoas que, por seu trabalho extraordinário, fruto do estudo e pesquisa sistemáticos na área de controle aversivo e de uma sensibilidade para os problemas humanos, nos serviram de modelo: Maria Amélia Matos (PUC-SP) e Murray Sidman. Sidman, em seu livro, demonstra todas as possibilidades que o trabalho experimental e o conhecimento a partir dele produzido geram para a análise dos problemas envolvidos na utilização do controle aversivo. Nosso trabalho foi encontrar exemplos na realidade brasileira e analisá-los segundo esta perspectiva. Maria Amélia Matos, em tempos difíceis, com coragem, perspicácia e poesia nos mostrou que isto poderia ser feito.
O CONTEXTO DE NOSSA ANÁLISE DA VIOLÊNCIA
1. Violência não é mais um atributo da vida urbana contemporânea.
A análise que vamos desenvolver se baseia em alguns pressupostos que acreditamos estarem, com certeza, presentes em uma concepção Behaviorista Radical de Homem, mas que, em nosso caso particular, foram aprendidos a partir de outro contexto teórico. E, por esta razão, sentimos necessidade de esclarecê-los.
a) O indivíduo se produz em sociedade:
"A produção do indivíduo isolado fora da sociedade ... é uma coisa tão absurda como o desenvolvimento da linguagem sem indivíduos que vivam juntos e falem entre si." (Marx, Introdução de Para a crítica da economia política, p.4)
b) O homem é um ser histórico e social em contínuo processo de satisfação de suas necessidades:
(...) "esta criação de necessidades novas constitui o primeiro fato histórico."(Marx, A ideologia Alemã, pp.28, 29)
c) Este processo de criação de necessidades não é linear ou unidirecional, para alguns ocorre um refinamento, para outros brutalização, e este processo expressa as contradições do momento histórico vivido:
"Inclusive a necessidade de ar livre deixa de ser no trabalhador uma necessidade. A luz, o ar etc., a mais simples limpeza animal deixa de ser uma necessidade para o homem (..) Não apenas o homem não tem nenhuma necessidade humana, mas, inclusive, as necessidades animais desaparecem. O irlandês não conhece outra necessidade senão a de comer, e, mais precisamente, a de comer batatas, e, para sermos mais exatos, a de comer batatas estragadas, a pior espécie de batatas (...) A simplificação da máquina, do trabalho, é utilizada para converter em operário, o homem que ainda está se formando, o homem ainda não formado - a criança - assim como o operário tornou-se uma criança totalmente abandonada. A máquina acomoda-se à fraqueza do homem, para converter o homem fraco em máquina. (Marx, Manuscritos, pp. 157, 158)
d) É neste processo de criação de necessidades que o homem se constitui:
"O homem se apropria de sua essência universal de forma universal, isto é, como homem total. Cada uma das relações humanas com o mundo (ver, ouvir, cheirar, saborear, sentir, pensar, observar, perceber, desejar, atuar, amar), em resumo, todos os órgãos de sua individualidade são, em seu comportamento objetivo, em seu comportamento para o objeto, apropriação deste (...) A formação dos cinco sentidos é um trabalho de toda a história universal até nossos dias. Para o homem que morre de fome não existe a forma humana da comida, mas apenas seu modo de existência abstrato de comida; esta bem poderia apresentar-se, na sua forma mais grosseira, e seria impossível dizer, então, em que se distingue esta atividade para alimentar-se da atividade animal para alimentar-se (... ) A objetivação da essência humana, tanto no sentido teórico quanto no sentido prático é, pois, necessária tanto para fazer humano o sentido do homem, como para criar o sentido humano correspondente à plena riqueza da essência humana e natural."(Marx, Manuscritos, pp.147, 150).
Estes pressupostos nos impedem de olhar a violência como simplesmente um aspecto da vida dos homens (ou talvez, de alguns homens), ou como mais um atributo do homem. Isto significa que não olharemos para a violência como algo em si, a parte, em separado, mas, que ao olharmos para a violência, estamos falando do comportamento humano, ou seja, de relações entre os homens. Ao discutir a violência, na realidade, estamos analisando o homem que está sendo produzido e em que condições este homem está sendo produzido.
Numa tradição de pensamento que compõe a história do behaviorismo, as perguntas sobre violência nem sempre foram formuladas desta forma, mas a intuição das respostas a estas questões vem de longe. Sechenov (1829-1905), em 1863, ao analisar o desenvolvimento da capacidade para impedir movimentos afirma que, após a criança ter aprendido a andar e falar (usar os músculos) e já ser capaz de entender o que se diz para ela, passa a ser ensinada com advertências: " Não faça isto, senão...". Para o ensino da criança, tais advertências são, freqüentemente, acompanhadas por castigo de dor física; isto carrega terrivelmente o futuro da criança; sob tal sistema de educação, a moralidade do motivo - que deveria dirigir sozinha as atividades da criança - é ocultada pelo sentimento muito mais forte de medo e, dessa forma, surge no mundo a triste moralidade do medo." ( Sechenov, 1863, citado em Herrnstein e Boring, p. 393)
Muito se estudou depois disto. Mas os resultados só fizeram corroborar, detalhar e tornar mais estarrecedora esta primeira intuição. As pesquisas realizadas dentro de uma perspectiva behaviorista radical, fornecem hoje um conjunto de conceitos que permite analisar o problema da violência na amplitude que ele tem e propor soluções tentativas, tentativas exatamente por reconhecer a sua real dimensão.
A utilização do conceito de contingências como instrumento de análise da realidade, nos permite identificar relações específicas e peculiares entre o indivíduo e o ambiente, bem como as alterações produzidas por estas relações no ambiente e no sujeito, superando uma análise impressionista, permitindo identificar claramente as condições de produção e manutenção destas contingências.
2. Violência e Controle Aversivo
Esclarecidos os pressupostos que dirigem a maneira como concebemos o fenômeno da violência, nos resta explicitar o que entendemos por "violência". Entendemos "violência" como sinônimo de "coerção", tal como Sidman (1989) utiliza o termo: como a presença de controle aversivo em nossas interações com outros homens e com a natureza. E, controle aversivo, envolve punição, reforçamento negativo (fuga e esquiva) e privações socialmente impostas. Quando a polícia invade uma favela em resposta à morte de um policial; ou, quando invade um presídio para conter uma rebelião; quando tortura um preso que não seguiu as normas estabelecidas, estamos clara e, obviamente, falando de Punição.
Quando, reagindo a um assalto, entregamos nossa carteira; ou, quando uma família paga o resgate de um seqüestro; quando instalamos traves e alarmes nos nossos carros, estamos falando de Reforçamento Negativo (fuga e esquiva).
Quando crianças são tornadas desnutridas por falta de alimento; quando, a um trabalhador, se paga um salário de 100 reais; quando crianças são obrigadas a trabalhar aos 10 anos de idade para ganhar seu sustento, quando, enfim, aumenta a desigualdade entre ricos e pobres, estamos falando de Privação Socialmente Imposta. Qualquer destas situações é uma situação de violência.
COMO O BEHAVIORISMO RADICAL PODE CONTRIBUIR PARA A ANÁLISE DA VIOLÊNCIA
1. A difusão da violência.
A violência é muito freqüente e faz parte de nosso cotidiano: como conseqüência nos acostumamos com ela. A descrição das contingências presentes na vida cotidiana hoje, nos grandes centros urbanos, revela que o controle aversivo predomina como forma de interação entre os homens, entre os homens e as instituições sociais e entre os homens e a natureza. O Controle Aversivo é de tal forma disseminado e freqüente, que não mais nos damos conta de que outras formas de relação seriam possíveis, agimos e reagimos como se não houvesse outra alternativa de interação.
A simples leitura da primeira página da Folha de São Paulo, de 20/04/95, é um exemplo contundente da presença constante e disseminada do controle aversivo em nossas vidas, e, o fato de ser tratada como simplesmente mais uma primeira página de jornal, mostra como reagimos "naturalmente" à sua presença. As chamadas eram:
TERROR EXPLODE PRÉDIO NOS EUA. Informe calcula 78 mortos no maior atentado do país contra edifício do governo federal em Oklahoma.
DECRETADO ESTADO DE SÍTIO NA BOLÍVIA: A medida, permitida pela constituição, foi resposta à conflitos entre policiais e professores em greve, a decretação de paralisação geral e a ameaça de separatismo em Tarija (Sul). Foram presas 376 pessoas entre sindicalistas e plantadores de coca.
BOMBA FERE EM MADRI MAIOR LÍDER DA OPOSIÇÃO
ATAQUE COM GÁS INTOXICA 400 PESSOAS NO JAPÃO
FHC MANDA SÉRGIO MOTTA LIMITAR SEUS COMENTÁRIOS
NÚMERO DE MISERÁVEIS CRESCE 42,2%
CÂMARA APROVA MÍNIMO DE 100 REAIS.
Além disto, das quatro chamadas da primeira página que não se relacionam, pelo menos explícita e diretamente, com violência, uma delas era CORINTIANS BATE POR 3 A 0 A FERROVIÁRIA. Mesmo em relação a um fenômeno que poderia não envolver qualquer forma de controle aversivo, a metáfora utilizada revela a presença pervasiva da violência.
Se esta leitura não fosse suficiente para nos convencer, bastaria continuar lendo o jornal por mais alguns dias. No dia 05/05/95 encontraríamos a seguinte chamada, RIO REGISTRA 27 HOMICÍDIOS EM 24 HORAS. No dia 12/07/95, MORTES VIOLENTAS CRESCEM 43,5%. No mesmo dia: NÚMERO DE HOMICÍDIOS CRESCE 16,4% EM SP. E no dia 03/08/95: TAXISTAS PARAM TRÂNSITO POR 4 HORAS: Manifestantes protestam e afirmam que seis motoristas foram mortos desde 6ª feira. Talvez não seja irrelevante que algumas destas matérias tenham entrado na seção Cotidiano.
Como indicador da freqüência da violência basta procurar e, freqüentemente encontraremos, às segundas feiras, um "informe" na Folha de São Paulo sobre o número de assassinatos na cidade de São Paulo, durante o final de semana. E para completar a "informação", freqüentemente encontraremos comparações comprovadoras do aumento de freqüência. Por exemplo, em 18/09/95, lemos: FIM DE SEMANA EM SÃO PAULO REGISTRA 25 ASSASSINATOS. Os 25 homicídios deste final de semana estão longe do recorde do ano, observado nos dias 24 e 25 de junho, quando 64 pessoas foram assassinadas. Ainda no dia 18/09/95, a Folha de São Paulo publicou reportagem com o seguinte título: 39ª CHACINA DO ANO, PRODUZINDO UM TOTAL DE 138 VÍTIMAS.
Se o destaque dado na imprensa, em termos de espaço físico no jornal, se correlacionar com o impacto da notícia sobre a população. podemos supor que chacinas passaram a ser algo comum: no dia 24 de abril, a Folha dava aproximadamente uma página e meia para informar detalhadamente a 16ª chacina do ano em São Paulo. No dia 18 de setembro, 1/8 de página para informar a 39ª chacina do ano.
Efetivamente, parece que a violência passou a fazer parte de nosso cotidiano, banalizou-se. Esta banalização produz e, ao mesmo tempo, reflete, o fato de que "não nos damos conta do papel que a violência desempenha em nossas interações uns com os outros". Entretanto, seus efeitos são amplos.
2. Os efeitos da violência
2.1. 0 uso da violência acarreta mais violência
Em primeiro lugar, porque o uso de estimulação aversiva implica na continuação do uso de estimulação aversiva. A utilização de estímulos aversivos, como conseqüências de comportamentos, compete com outras conseqüências. Por isto, seu efeito é temporário e, para evitar tal competição, aumentamos a intensidade do estímulo aversivo.
Na Folha de São Paulo, por exemplo, em 24/07/95, numa reportagem sobre a utilização de tacos de beisebol como arma, por jovens, lê-se a seguinte chamada: PRIMEIRO UMA CONVERSA; DAÍ O TACO E, DEPOIS, USO A PISTOLA. Os jovens entrevistados justificam o uso do taco como defesa contra assaltos. Um menino de 12 anos afirma: "saio com o taco, mas só vou usá-lo se alguém vier me assaltar."
Em segundo lugar, porque o uso de estimulação aversiva gera contra-controle, pois, em geral, também é aversivo. Uma reportagem da Folha de São Paulo, de 10/05/95 sobre invasão da polícia em favela do Rio de Janeiro, é bastante ilustrativa: "Um menino de 10 anos morreu durante uma operação da polícia civil ontem de manhã na favela Parque Vilanova, em Duque de Caxias, na baixada fluminense. Segundo testemunhas, Iron Souza da Silva se escondeu debaixo da cama, mas mesmo assim foi baleado por policiais que perseguiam supostos assaltantes. Cerca de 300 moradores fizeram protesto em uma avenida próxima da favela. O ato foi repelido pela polícia militar e terminou em saques a lojas e depredações".
2.2. O uso da violência faz com que tudo tome a feição de violência.
Através de relações respondentes e operantes, a utilização de estímulos aversivos, gradual e sistematicamente, aumenta o número de estímulos aversivos em nosso ambiente, tornando estímulos originalmente "neutros" e, até mesmo, originalmente, reforçadores positivos, em estímulos aversivos. Na Folha de São Paulo de 21/07/95, encontramos o seguinte relato de uma mulher após ter sido ameaçada por um menino "armado" de uma pedra, enquanto estava dentro de seu carro: "Agora estou com medo de parar no farol e dar dinheirinho a outros meninos".
Em reportagem sobre chacinas em Francisco Morato (19 pessoas mortas em 4 chacinas ocorridas entre outubro e abril), no jornal O Estado de São Paulo, de 23/04/95, lê-se: "O medo já faz parte do dia a dia das famílias do jardim Santo Antônio, bairro onde aconteceram 3 das 4 matanças (nenhuma delas esclarecida pela polícia até agora). Andar pelas ruas é perigoso. Falar sobre o assunto com um desconhecido quase impensável. A aparição de uma máquina fotográfica instala o pânico: todos fogem aterrorizados."
2.3. O uso da violência produz um ser humano impotente diante da violência
Num mundo pleno de estímulos aversivos, a esquiva e a fuga são as únicas alternativas. Toda energia que temos é dirigida para a fuga e a esquiva. O uso de controle aversivo produz sujeitos quietos, passivos, que fazem o mínimo necessário, que desgostam do ambiente em que vivem e o temem e que, assim que puderem, fugirão ou se esquivarão. A fuga e a esquiva assumem muitas formas diferentes. Fugimos e nos esquivamos:
a) Ignorando tudo que acontece: empurramos o problema com a barriga, atribuímos responsabilidade a outros, ou isolamo-nos socialmente. Este isolamento implica a não participação política, profissional e pessoal, a não participação na vida da comunidade. Um bom exemplo de como ignorar, é um comportamento de fuga / esquiva, é encontrado em alguns dos episódios que se seguiram à briga entre torcedores do São Paulo e Palmeiras, num jogo de juniores, realizado domingo pela manhã, em 20/08/95, que terminou com 102 pessoas feridas e uma pessoa morta, aos quais a imprensa dedicou enorme espaço. Dentre as notícias que se seguiram, destacamos: Em 22/08/95, ENTIDADE QUE DIRIGE O FUTEBOL PAULISTA QUER QUE MINISTÉRIO PÚBLICO PROÍBA A EXISTÊNCIA DAS ORGANIZADAS. Em 29/08/95, PROJETO DE LEI ANTIVIOLÊNCIA FICA PARA 96, DIZ MINISTRO. O que é isto senão empurrar com a barriga? Em 22/08/95, CBF ATACA E COLOCA CULPA DA VIOLÊNCIA NOS PAULISTAS. O que é isto senão atribuir responsabilidade a outros? Ou ainda, em 28/08/95: SÍNDROME DA VIOLÊNCIA AFUGENTA OS TORCEDORES / PAIS PROÍBEM OS FILHOS DE IR AOS ESTÁDIOS ASSISTIR FUTEBOL. Dois exemplos de isolamento.
A isenção pessoal e política talvez seja uma das formas de fuga / esquiva mais comumente encontradas entre nós. Cotidianamente nos deparamos com ela, nos outros e em nós. Em O Estado de São Paulo, na mesma reportagem já citada sobre chacinas, o jornalista escreve: "O temor entre os moradores do J. S. Antônio, em Francisco Morato, cresce assim que ouvem a frase: 'o que aconteceu?'. É a senha do pavor: ninguém viu, sabe, ouviu. Para se fechar no silêncio, a polícia suspeita até que há um subterfúgio. Trata-se do fato de testemunhas ou sobreviventes apontarem os matadores como 'encapuzados' - o que elimina a chance de um posterior reconhecimento. "
b) Desistindo do que está a nossa volta: a violência produz como forma de fuga / esquiva o abandono da família, da escola, da sociedade; desistimos dos ambientes nos quais somos submetidos a controle aversivo e das pessoas que nos controlam aversivamente. Ainda na mesma notícia de O Estado de São Paulo, podemos ler. "Boa parte das pessoas que poderiam colaborar com as investigações sumiu da cidade."
Em entrevista para O Estado de São Paulo, em 26/07/95, lemos o relato de uma história muito conhecida entre nós e que tomamos como apenas mais uma história: um menino de 12 anos, que mora na rua há 3 anos e diz assaltar pessoas em carros "armado" de caco de vidro, quando perguntado por seus pais responde: "Eles não ligam para mim. Meu pai bebe o dia inteiro. Quando apareço lá em casa, no Taboão, minha mãe quer saber se tenho dinheiro. ( .. ) Faz muito tempo que não vou lá".
c) Buscando destruir, se pudermos, as fontes de coerção: sob controle aversivo emitimos respostas de fuga / esquiva que, quando possível, assumem a forma de ataque à fonte de coerção. Sob coação, tendemos a atacar aquele que nos coage e, tendemos a fazê-lo com toda a intensidade de que somos capazes. Pior ainda, qualquer estimulação aversiva, ainda que não se dirija diretamente a nós, pode produzir respostas de agressão. Tendemos a reagir com o ataque, indiscriminadamente, à tudo aquilo que estiver relacionado à estimulação aversiva. São indicativos disto: o depoimento de uma mulher que sofreu tentativa de assalto por parte de um menino: "Quando abaixei para pegar (a carteira) ele bateu a pedra no vidro (do carro) e disse que ia estourar minha boca. Eu o ameacei e ele quase me acertou" (FSP, 21/07/95); a descrição feita por um menino de 12 anos, que assalta motoristas com caco de vidro "enquadrei uma garota e um cara que tava num carro atrás saiu com um porrete e bateu na minha cabeça, nas costas e no meu braço. Bateu bastante e cortei a mão com o vidro. O homem tava furioso e saí dali bem depressa." (OESP, 26/07/95)
Os relatos sobre motins, tão freqüentes na imprensa, parecem também indicativos desta forma de fuga / esquiva: REBELIÃO EM SÃO PAULO MATA CARCEREIRO. Uma tentativa de fuga seguida de rebelião (...) causou a morte de um agente de segurança e feriu outros 3 / COMPLEXO TEM QUINTO MOTIM EM 95. O complexo penitenciário enfrenta seu 5º motim este ano, 3 deles ocorridos em março. A primeira rebelião, no dia 1º de março aconteceu na casa de detenção ( ... ) no mesmo dia 770 detentos (...) fizeram nova rebelião (...) Eles trocaram tiros com a polícia, queimaram colchões e colocaram fogo em áreas do presídio. (...) Quatro dias depois (...) dois detentos tentaram fugir. (FSP, 21/06/95)
2.4. O uso da violência nos torna sujeitos amargos, vivendo uma vida amarga:
Uma análise detalhada das situações de controle aversivo nos revela que outras alterações podem ser identificadas no repertório comportamental, além das respostas de fuga e esquiva.
a) Sob controle aversivo não podemos deixar de estar vigilantes. Esta vigilância nos coloca em uma posição que impede a aprendizagem de qualquer outra coisa. Nosso único critério de sucesso é nossa efetividade em reduzir ou evitar a coerção. Tornamo-nos cativos do nosso medo. Em matéria da Folha de S Paulo, de 26/09/93, há o relato de um homem de 42 anos que reagiu a um assalto e acabou matando um dos assaltantes. "Vive até hoje assustado com a idéia de que os assaltantes voltarão para vingar o colega morto. Deixou o bairro, mudou-se para um apartamento, depois para um pequeno prédio, onde procura ser o mais discreto possível. Nunca mais passou pelo bairro onde morava. Não sai à noite, e só usa carro de segunda, para não chamar a atenção".
b) Sob controle aversivo não exploramos o mundo. Desenvolvemos um repertório comportamental estreito e limitado, temos medo de explorar o mundo, tememos as novidades. Perdemos a oportunidade de mudar, de explorar contingências, a vida torna-se uma monótona repetição. É o que nos conta dona Neusa, uma senhora aposentada que mora em uma região em Fortaleza, próxima de um ponto de encontro de gangues, que relata que, há um ano não sai de casa à noite, já não conversa com suas vizinhas na porta de casa, costume que mantinha desde há 25 anos quando passou a morar no bairro: "Agora meu único divertimento é ficar sentada assistindo TV, como uma paralítica." (FSP, 26/09/93). É o que nos conta também um jornalista, escrevendo sobre um bairro que já presenciou várias chacinas: "À cada morte os habitantes acabam estabelecendo hábitos cada vez mais cuidadosos. Um jovem de 15 anos que vive na região relata: Não ando mais sozinho e sou obrigado a ir da escola direto para casa" (OESP, 23/04/95).
c) Sob controle aversivo só conseguimos dar conta de uma rotina pré-estabelecida. Os comportamentos de fuga e esquiva se tomam estereotipados, mecânicos e compulsivos. Não podemos correr o risco de variar exatamente aquela estratégia que sempre nos livrou do perigo e da dor. A repetição, a estereotipada, parecem ser o único porto seguro. Uma mulher, que experienciou três assaltos no carro e um, em sua casa, em que seu marido conseguiu acionar o alarme e os ladrões renderam-se à polícia, relata, dois anos depois do último assalto: "Até hoje preciso de tranqüilizantes para dormir, acho que vou precisar sempre. ( .. ) A idéia de que o alarme possa vir a falhar me deixa apavorada. Se por algum motivo ele dispara durante a noite sinto que eles já estão subindo as escadas, que vai começar tudo de novo. Essa sensação de apavoramento eu sinto todas as noites." O jornalista relata que o sistema de segurança da casa que já era sofisticado foi reforçado: O funcionamento dos dispositivos é checado todas as noites. "Ainda assim, quando vou deitar, entrego a casa a Deus". (FSP, 26/09/93)
d) Sob controle aversivo comportamentos supersticiosos tomam-se muito prováveis. Os comportamentos de fuga e esquiva dificultam a exploração e a emissão de respostas alternativas, bem como, aquelas respostas, que, acidentalmente, estão associadas com respostas de esquiva efetivas, se fortalecem, gerando comportamento supersticioso de difícil extinção. Tornamo-nos frágeis e crédulos. Assim interpretamos o relato de um jovem, cujo irmão morreu em assalto, que afirma jamais sair à noite sem o par de tênis que o irmão usava quando do assalto. Diz ele: "É uma homenagem ao meu irmão. Ele perdeu a vida lutando por este tênis (..) este tênis para mim é sagrado. Quando estou com ele, sinto que estou com Míchel. Não tenho medo nenhum." (FSP, 26/09/93)
Em síntese, como nos ensina Sidman (1989), sob controle aversivo, ou num mundo violento, vivemos em contínuo estado de ansiedade e temos por companhia todas as alterações orgânicas que podem compor o estado de ansiedade: desenvolvemos úlceras, temos cólicas intestinais, palpitações, dores de cabeça, ataques cardíacos e estresses. Tememos todo e qualquer contato com nosso ambiente - físico e social. A apreensão nos acompanha todo o tempo, até mesmo nas situações aparentemente inócuas. Transformamo-nos em autômatos. Tornamo-nos doentes, neuróticos. Transformamo-nos em indivíduos negativos e inflexíveis. Não somos criativos, raramente fazemos o inesperado, qualquer opção nos assusta. Os sentimentos de medo e ódio tornam-se comuns, cotidianos, aparecem nas situações mais simples e se expandem em todas as direções.
E, por fim, quando nenhuma forma de fuga / esquiva for possível, só nos restará fugir de nós mesmos. Em 17/09/95, Jânio de Freitas apresenta dados sobre suicídios de índios no Mato Grosso do Sul. São 183 suicídios em 10 anos, 36 dos quais neste ano. Ao se referir aos "150 milhões de civilizados", que o suicídio de uma menina índia de 10 anos denunciaria, Jânio de Freitas parece indicar que a coerção, as privações impostas aos índios, têm que ser encaradas de frente, como única alternativa de explicação e de intervenção. (FSP, 17/09/95).
Uma onda de suicídios entre funcionários do Banco do Brasil foi notícia no Jornal Brasil agora. Foram 13 suicídios, em seis meses, pelo menos um, na agência, diante dos colegas de trabalho. Sindicalistas têm associado a pressão econômica na qual vivem os funcionários a estes episódios.
Além de todas as conseqüências do controle aversivo até aqui levantadas, que por si já são catastróficas, Sidman analisa o que considera um dos efeitos mais terríveis da esquiva. Uma vez instalado, o comportamento de esquiva pode ser mantido indefinidamente, desde que o agente controlador, eventualmente e assistematicamente, libere estímulos aversivos ao acaso. Não seria este o caso, quando, depois de "controlada" a rebelião, no Carandiru a polícia colocou todos os homens nus (o que parece ser norma nestas situações) em um pátio, para proceder a ainda mais uma revista? Ou, o que explicaria a constatação de que trabalhadores sem terra que ocupavam uma fazenda tenham sido mortos pela polícia, pelas costas, depois de rendidos, na frente de seus companheiros? Ou, não seria este tipo de controle o objetivo da polícia quando invadiu, sem aviso, uma favela, à noite, encapuzada e entrou ao acaso em casas matando aqueles que encontrava, afirmando estar à cata de marginais traficantes? Não seria o objetivo destas "ações policiais" manter a submissão e o medo? De qualquer forma, foi isto que gerou. Diz um morador de Vigário Geral: "fingimos para nós mesmos que dormimos, o medo tira o sono". Relata outro: "Eu ouvi os tiras e os assovios. Nem me mexi para eles não ouvirem o barulho da cama." Ainda outro: "O silêncio e o medo eram tão grandes, que nem os cachorros latiram de madrugada, pela primeira vez em Vigário Geral". (Folha de S Paulo, 26/09/93).
As contingências de controle aversivo só podem ser mantidas quando a possibilidade de controle é assimétrica; quando uma das partes em interação tem acesso e poder para liberar estimulação aversiva, que a outra parte não detém. Nas instituições fechadas e, talvez, especialmente, nas instituições que fundamentam por princípio todo seu controle em contingências aversivas, em coerção e coação, um produto quase que inevitável é que este controle seja exacerbado para muito além daquilo que de início foi pactuado. Quando a polícia se confunde com o bandido, usando de seu poder para cometer crimes. associando-se aos chamados criminosos, protegida por suas armas, sua corporação e pelo medo que desperta, estamos diante de um caso deste tipo. Quando uma força policial entra quase que em combate físico com outra força policial, para impedir a execução de uma ordem judicial, estamos diante de um caso extremo em que aqueles que deveriam fazer cumprir a lei a ela se contrapõem, baseados em supostos interesses da corporação e ainda lutam com a outra instituição que tem os mesmos objetivos (Folha de S Paulo, 13/07/95).
A consciência moral produzida como conseqüência do controle aversivo gera um duplo padrão: aqueles que, dada a distribuição de poder na sociedade, são submetidos a controle aversivo mais do que controlam aversivamente, têm mais a perder por burlar a lei. Aqueles que detêm a maior possibilidade de controle aversivo mais facilmente podem burlar a lei. Este duplo padrão se revela nas mordomias concedidas aos bicheiros, ou a P.C. Farias, ou a policiais detidos por crimes comuns, enquanto que presos "comuns" vivem em celas onde sequer há lugar para dormir, tornando-se "homens morcego"; presos que se deixam amarrar por companheiros para que possam dormir no único espaço disponível: pendurados nas grades da cela (Folha de São Paulo, 21/05/93). Ou, este duplo padrão é tornado explícito nos julgamentos especiais, pela justiça militar, de policiais acusados de crimes comuns, enquanto que bandidos menos protegidos denunciam torturas nas delegacias do país, sem que jamais se consiga sequer que tais denúncias sejam investigadas.
Por que diante de tantos efeitos, de tantos problemas, nos mantemos participando e construindo um mundo violento, um mundo de relações coercitivas? Em primeiro lugar, porque estes efeitos do controle aversivo são atrasados, em segundo lugar, porque o simples conhecimento destes efeitos não suplanta os efeitos imediatos do controle.
Além disso, em um mundo hierarquizado, sem distribuição equitativa de reforçadores, segundo Holland (1978), as contingências de controle aversivo são necessárias, tornam-se como que a segunda natureza das relações sociais e das interações entre os homens, indispensáveis para a manutenção desta desigualdade e, inclusive, para a manutenção de esquemas de "refoçamento positivo".
Esta distribuição desigual de reforçadores e a desigual intensidade das contingências aversivas, exige ainda uma concepção de homem que atribua ao indivíduo, à sua consciência, as causas da desigualdade, da violência. Um conjunto de idéias que divida cada pessoa em atos e causas destes atos e que divida as pessoas em vítima e algoz. Este tipo de concepção possibilita atribuir a violência a causas inatas, ou a causas imutáveis, implica, assim, uma postura quase que contemplativa diante da violência, uma vez que a violência é naturalizada, é vista como parte da natureza humana. Ao mesmo tempo, o controle da violência é abordado e discutido com argumentos morais. As perguntas que dirigem a discussão são: quando a violência é justa e como tratar com justiça a violência.
Entre nós, psicólogos, esta concepção de homem merece uma especial atenção, já que ela está presente no conhecimento que produzimos e difundimos e, mais grave talvez, com o status de especialistas que nos é atribuído, este conhecimento e as ações dele derivadas tenderão a ser vistos como contendo soluções preferenciais. Como enfrentaremos "soluções" que compactuam com o problema? O que teríamos a dizer, ou a fazer, diante de um cartaz que anuncia o seguinte serviço : "Auto defesa psíquica e visualizações curadoras". E para vender seu produto, pergunta: "Você não estaria sendo vítima de um ataque psíquico?" Sugerindo a seguir: "Pare e pense ... Aprenda a defender-se no curso AUTO DEFESA PSÍQUICA E VISUALIZAÇÕES CURADORAS.
Como analistas do comportamento precisamos reconhecer que fazemos parte destas contingências. Os nossos sentimentos de impotência, a nossa inação, contraditoriamente, podem ser conseqüência da possibilidade que temos de analisar toda a complexidade do fenômeno que chamamos violência. E este talvez seja nosso primeiro problema. Que contingências nos fariam passar do conhecimento à ação?


ANDERY, Maria Amália P. A. e SÉRIO, Teresa Maria de A. P. A violência urbana: aplica-se a análise da coerção? Revista Desafio. Outubro/96. Rio de Janeiro, Brasil. (Internet: http://www.ibase.org.br/~desafio).