Maria Amália P. A.
Andery e Tereza Maria de A. P. Sério
Conferência apresentada no IV Encontro da Associação
Brasileira de Psicoterapia e Medicina Comportamental (ABPMC) realizada em
Campinas em 1995.
Não temos a pretensão aqui de apresentar o resultado de um
trabalho sistemático de coleta, análise e interpretação de dados. Este artigo
é fruto de um olhar mais atento para o fenômeno da violência, que se
fortaleceu a partir do momento que decidimos dar um curso eletivo na PUC-SP
sobre "Coerção", em 1993, baseado no livro de Murray Sidman
(Coerção e suas implicações, 1995, Ed.Psy). Uma versão preliminar deste
trabalho, já foi apresentada na Semana de Psicologia da PUC-SP, em 1993.
Desde então, temos comentado o assunto, recortado notícias
de jornal e, de algum modo, nos preocupado com a questão de como a AEC (Análise
Experimental do Comportamento) poderia servir de instrumento de análise e de
ferramenta de intervenção.
Nossa análise não é inédita, devemos muito a duas pessoas
que, por seu trabalho extraordinário, fruto do estudo e pesquisa sistemáticos
na área de controle aversivo e de uma sensibilidade para os problemas
humanos, nos serviram de modelo: Maria Amélia Matos (PUC-SP) e Murray Sidman.
Sidman, em seu livro, demonstra todas as possibilidades que o trabalho
experimental e o conhecimento a partir dele produzido geram para a análise
dos problemas envolvidos na utilização do controle aversivo. Nosso trabalho
foi encontrar exemplos na realidade brasileira e analisá-los segundo esta
perspectiva. Maria Amélia Matos, em tempos difíceis, com coragem, perspicácia
e poesia nos mostrou que isto poderia ser feito.
O CONTEXTO DE NOSSA ANÁLISE DA VIOLÊNCIA
1. Violência não é mais um atributo da vida urbana
contemporânea.
A análise que vamos desenvolver se baseia em alguns
pressupostos que acreditamos estarem, com certeza, presentes em uma concepção
Behaviorista Radical de Homem, mas que, em nosso caso particular, foram
aprendidos a partir de outro contexto teórico. E, por esta razão, sentimos
necessidade de esclarecê-los.
a) O indivíduo se produz em sociedade:
"A produção do indivíduo isolado fora da sociedade
... é uma coisa tão absurda como o desenvolvimento da linguagem sem
indivíduos que vivam juntos e falem entre si." (Marx, Introdução de Para
a crítica da economia política, p.4)
b) O homem é um ser histórico e social em contínuo
processo de satisfação de suas necessidades:
(...) "esta criação de necessidades novas constitui o
primeiro fato histórico."(Marx, A ideologia Alemã, pp.28, 29)
c) Este processo de criação de necessidades não é linear
ou unidirecional, para alguns ocorre um refinamento, para outros
brutalização, e este processo expressa as contradições do momento histórico
vivido:
"Inclusive a necessidade de ar livre deixa de ser no
trabalhador uma necessidade. A luz, o ar etc., a mais simples limpeza animal
deixa de ser uma necessidade para o homem (..) Não apenas o homem não tem
nenhuma necessidade humana, mas, inclusive, as necessidades animais
desaparecem. O irlandês não conhece outra necessidade senão a de comer, e,
mais precisamente, a de comer batatas, e, para sermos mais exatos, a de comer
batatas estragadas, a pior espécie de batatas (...) A simplificação da
máquina, do trabalho, é utilizada para converter em operário, o homem que
ainda está se formando, o homem ainda não formado - a criança - assim como o
operário tornou-se uma criança totalmente abandonada. A máquina acomoda-se à
fraqueza do homem, para converter o homem fraco em máquina. (Marx,
Manuscritos, pp. 157, 158)
d) É neste processo de criação de necessidades que o homem
se constitui:
"O homem se apropria de sua essência universal de
forma universal, isto é, como homem total. Cada uma das relações humanas com
o mundo (ver, ouvir, cheirar, saborear, sentir, pensar, observar, perceber,
desejar, atuar, amar), em resumo, todos os órgãos de sua individualidade são,
em seu comportamento objetivo, em seu comportamento para o objeto,
apropriação deste (...) A formação dos cinco sentidos é um trabalho de toda a
história universal até nossos dias. Para o homem que morre de fome não existe
a forma humana da comida, mas apenas seu modo de existência abstrato de
comida; esta bem poderia apresentar-se, na sua forma mais grosseira, e seria
impossível dizer, então, em que se distingue esta atividade para alimentar-se
da atividade animal para alimentar-se (... ) A objetivação da essência
humana, tanto no sentido teórico quanto no sentido prático é, pois,
necessária tanto para fazer humano o sentido do homem, como para criar o
sentido humano correspondente à plena riqueza da essência humana e natural."(Marx,
Manuscritos, pp.147, 150).
Estes pressupostos nos impedem de olhar a violência como
simplesmente um aspecto da vida dos homens (ou talvez, de alguns homens), ou
como mais um atributo do homem. Isto significa que não olharemos para a
violência como algo em si, a parte, em separado, mas, que ao olharmos para a
violência, estamos falando do comportamento humano, ou seja, de relações
entre os homens. Ao discutir a violência, na realidade, estamos analisando o
homem que está sendo produzido e em que condições este homem está sendo
produzido.
Numa tradição de pensamento que compõe a história do
behaviorismo, as perguntas sobre violência nem sempre foram formuladas desta
forma, mas a intuição das respostas a estas questões vem de longe. Sechenov
(1829-1905), em 1863, ao analisar o desenvolvimento da capacidade para
impedir movimentos afirma que, após a criança ter aprendido a andar e falar
(usar os músculos) e já ser capaz de entender o que se diz para ela, passa a
ser ensinada com advertências: " Não faça isto, senão...". Para o
ensino da criança, tais advertências são, freqüentemente, acompanhadas por
castigo de dor física; isto carrega terrivelmente o futuro da criança; sob
tal sistema de educação, a moralidade do motivo - que deveria dirigir sozinha
as atividades da criança - é ocultada pelo sentimento muito mais forte de
medo e, dessa forma, surge no mundo a triste moralidade do medo." (
Sechenov, 1863, citado em Herrnstein e Boring, p. 393)
Muito se estudou depois disto. Mas os resultados só
fizeram corroborar, detalhar e tornar mais estarrecedora esta primeira
intuição. As pesquisas realizadas dentro de uma perspectiva behaviorista
radical, fornecem hoje um conjunto de conceitos que permite analisar o
problema da violência na amplitude que ele tem e propor soluções tentativas,
tentativas exatamente por reconhecer a sua real dimensão.
A utilização do conceito de contingências como instrumento
de análise da realidade, nos permite identificar relações específicas e
peculiares entre o indivíduo e o ambiente, bem como as alterações produzidas
por estas relações no ambiente e no sujeito, superando uma análise
impressionista, permitindo identificar claramente as condições de produção e
manutenção destas contingências.
2. Violência e Controle Aversivo
Esclarecidos os pressupostos que dirigem a maneira como
concebemos o fenômeno da violência, nos resta explicitar o que entendemos por
"violência". Entendemos "violência" como
sinônimo de "coerção", tal como Sidman (1989) utiliza o termo:
como a presença de controle aversivo em nossas interações com outros homens e
com a natureza. E, controle aversivo, envolve punição, reforçamento
negativo (fuga e esquiva) e privações socialmente impostas. Quando
a polícia invade uma favela em resposta à morte de um policial; ou, quando
invade um presídio para conter uma rebelião; quando tortura um preso que não
seguiu as normas estabelecidas, estamos clara e, obviamente, falando de Punição.
Quando, reagindo a um assalto, entregamos nossa carteira;
ou, quando uma família paga o resgate de um seqüestro; quando instalamos
traves e alarmes nos nossos carros, estamos falando de Reforçamento
Negativo (fuga e esquiva).
Quando crianças são tornadas desnutridas por falta de
alimento; quando, a um trabalhador, se paga um salário de 100 reais; quando
crianças são obrigadas a trabalhar aos 10 anos de idade para ganhar seu
sustento, quando, enfim, aumenta a desigualdade entre ricos e pobres, estamos
falando de Privação Socialmente Imposta. Qualquer destas situações
é uma situação de violência.
COMO O BEHAVIORISMO RADICAL PODE CONTRIBUIR PARA A ANÁLISE
DA VIOLÊNCIA
1. A
difusão da violência.
A violência é muito freqüente e faz parte de nosso
cotidiano: como conseqüência nos acostumamos com ela. A descrição das
contingências presentes na vida cotidiana hoje, nos grandes centros urbanos,
revela que o controle aversivo predomina como forma de interação entre os
homens, entre os homens e as instituições sociais e entre os homens e a
natureza. O Controle Aversivo é de tal forma disseminado e freqüente, que não
mais nos damos conta de que outras formas de relação seriam possíveis, agimos
e reagimos como se não houvesse outra alternativa de interação.
A simples leitura da primeira página da Folha de São
Paulo, de 20/04/95, é um exemplo contundente da presença constante e
disseminada do controle aversivo em nossas vidas, e, o fato de ser tratada
como simplesmente mais uma primeira página de jornal, mostra como reagimos
"naturalmente" à sua presença. As chamadas eram:
TERROR EXPLODE PRÉDIO NOS EUA. Informe calcula 78 mortos
no maior atentado do país contra edifício do governo federal em Oklahoma.
DECRETADO ESTADO DE SÍTIO NA BOLÍVIA: A medida, permitida
pela constituição, foi resposta à conflitos entre policiais e professores em
greve, a decretação de paralisação geral e a ameaça de separatismo em Tarija
(Sul). Foram presas 376 pessoas entre sindicalistas e plantadores de coca.
BOMBA FERE EM MADRI MAIOR LÍDER DA OPOSIÇÃO
ATAQUE COM GÁS INTOXICA 400 PESSOAS NO JAPÃO
FHC MANDA SÉRGIO MOTTA LIMITAR SEUS COMENTÁRIOS
NÚMERO DE MISERÁVEIS CRESCE 42,2%
CÂMARA APROVA MÍNIMO DE 100 REAIS.
Além disto, das quatro chamadas da primeira página que não
se relacionam, pelo menos explícita e diretamente, com violência, uma delas
era CORINTIANS BATE POR 3 A
0 A
FERROVIÁRIA. Mesmo em relação a um fenômeno que poderia não envolver qualquer
forma de controle aversivo, a metáfora utilizada revela a presença pervasiva
da violência.
Se esta leitura não fosse suficiente para nos convencer,
bastaria continuar lendo o jornal por mais alguns dias. No dia 05/05/95
encontraríamos a seguinte chamada, RIO REGISTRA 27 HOMICÍDIOS EM 24 HORAS. No
dia 12/07/95, MORTES VIOLENTAS CRESCEM 43,5%. No mesmo dia: NÚMERO DE
HOMICÍDIOS CRESCE 16,4% EM SP.
E no dia 03/08/95: TAXISTAS PARAM TRÂNSITO POR 4 HORAS:
Manifestantes protestam e afirmam que seis motoristas foram mortos desde 6ª
feira. Talvez não seja irrelevante que algumas destas matérias tenham entrado
na seção Cotidiano.
Como indicador da freqüência da violência basta procurar
e, freqüentemente encontraremos, às segundas feiras, um "informe"
na Folha de São Paulo sobre o número de assassinatos na cidade de São Paulo,
durante o final de semana. E para completar a "informação",
freqüentemente encontraremos comparações comprovadoras do aumento de
freqüência. Por exemplo, em 18/09/95, lemos: FIM DE SEMANA EM SÃO PAULO REGISTRA
25 ASSASSINATOS. Os 25 homicídios deste final de semana estão longe do
recorde do ano, observado nos dias 24 e 25 de junho, quando 64 pessoas foram
assassinadas. Ainda no dia 18/09/95, a Folha de São Paulo publicou reportagem
com o seguinte título: 39ª CHACINA DO ANO, PRODUZINDO UM TOTAL DE 138
VÍTIMAS.
Se o destaque dado na imprensa, em termos de espaço físico
no jornal, se correlacionar com o impacto da notícia sobre a população.
podemos supor que chacinas passaram a ser algo comum: no dia 24 de abril, a
Folha dava aproximadamente uma página e meia para informar detalhadamente a
16ª chacina do ano em
São Paulo. No dia 18 de setembro, 1/8 de página para
informar a 39ª chacina do ano.
Efetivamente, parece que a violência passou a fazer parte
de nosso cotidiano, banalizou-se. Esta banalização produz e, ao mesmo tempo,
reflete, o fato de que "não nos damos conta do papel que a violência
desempenha em nossas interações uns com os outros". Entretanto, seus
efeitos são amplos.
2. Os efeitos da violência
2.1. 0 uso da violência acarreta mais violência
Em primeiro lugar, porque o uso de estimulação aversiva
implica na continuação do uso de estimulação aversiva. A utilização de
estímulos aversivos, como conseqüências de comportamentos, compete com outras
conseqüências. Por isto, seu efeito é temporário e, para evitar tal
competição, aumentamos a intensidade do estímulo aversivo.
Na Folha de São Paulo, por exemplo, em 24/07/95, numa
reportagem sobre a utilização de tacos de beisebol como arma, por jovens,
lê-se a seguinte chamada: PRIMEIRO UMA CONVERSA; DAÍ O TACO E, DEPOIS, USO A
PISTOLA. Os jovens entrevistados justificam o uso do taco como defesa contra
assaltos. Um menino de 12 anos afirma: "saio com o taco, mas só vou
usá-lo se alguém vier me assaltar."
Em segundo lugar, porque o uso de estimulação aversiva
gera contra-controle, pois, em geral, também é aversivo. Uma reportagem da
Folha de São Paulo, de 10/05/95 sobre invasão da polícia em favela do Rio de
Janeiro, é bastante ilustrativa: "Um menino de 10 anos morreu durante
uma operação da polícia civil ontem de manhã na favela Parque Vilanova, em
Duque de Caxias, na baixada fluminense. Segundo testemunhas, Iron Souza da
Silva se escondeu debaixo da cama, mas mesmo assim foi baleado por policiais
que perseguiam supostos assaltantes. Cerca de 300 moradores fizeram protesto
em uma avenida próxima da favela. O ato foi repelido pela polícia militar e
terminou em saques a lojas e depredações".
2.2. O uso da violência faz com que tudo tome a feição de
violência.
Através de relações respondentes e operantes, a utilização
de estímulos aversivos, gradual e sistematicamente, aumenta o número de
estímulos aversivos em nosso ambiente, tornando estímulos originalmente
"neutros" e, até mesmo, originalmente, reforçadores positivos, em
estímulos aversivos. Na Folha de São Paulo de 21/07/95, encontramos o
seguinte relato de uma mulher após ter sido ameaçada por um menino
"armado" de uma pedra, enquanto estava dentro de seu carro:
"Agora estou com medo de parar no farol e dar dinheirinho a outros
meninos".
Em reportagem sobre chacinas em Francisco Morato
(19 pessoas mortas em 4 chacinas ocorridas entre outubro e abril), no jornal
O Estado de São Paulo, de 23/04/95, lê-se: "O medo já faz parte do dia a
dia das famílias do jardim Santo Antônio, bairro onde aconteceram 3 das 4
matanças (nenhuma delas esclarecida pela polícia até agora). Andar pelas ruas
é perigoso. Falar sobre o assunto com um desconhecido quase impensável. A
aparição de uma máquina fotográfica instala o pânico: todos fogem
aterrorizados."
2.3. O uso da violência produz um ser humano impotente
diante da violência
Num mundo pleno de estímulos aversivos, a esquiva e a fuga
são as únicas alternativas. Toda energia que temos é dirigida para a fuga e a
esquiva. O uso de controle aversivo produz sujeitos quietos, passivos, que
fazem o mínimo necessário, que desgostam do ambiente em que vivem e o temem e
que, assim que puderem, fugirão ou se esquivarão. A fuga e a esquiva assumem
muitas formas diferentes. Fugimos e nos esquivamos:
a) Ignorando tudo que acontece: empurramos o problema com
a barriga, atribuímos responsabilidade a outros, ou isolamo-nos socialmente.
Este isolamento implica a não participação política, profissional e pessoal,
a não participação na vida da comunidade. Um bom exemplo de como ignorar, é
um comportamento de fuga / esquiva, é encontrado em alguns dos episódios que
se seguiram à briga entre torcedores do São Paulo e Palmeiras, num jogo de juniores,
realizado domingo pela manhã, em 20/08/95, que terminou com 102 pessoas
feridas e uma pessoa morta, aos quais a imprensa dedicou enorme espaço.
Dentre as notícias que se seguiram, destacamos: Em 22/08/95, ENTIDADE QUE
DIRIGE O FUTEBOL PAULISTA QUER QUE MINISTÉRIO PÚBLICO PROÍBA A EXISTÊNCIA DAS
ORGANIZADAS. Em 29/08/95, PROJETO DE LEI ANTIVIOLÊNCIA FICA PARA 96, DIZ
MINISTRO. O que é isto senão empurrar com a barriga? Em 22/08/95, CBF ATACA E
COLOCA CULPA DA VIOLÊNCIA NOS PAULISTAS. O que é isto senão atribuir
responsabilidade a outros? Ou ainda, em 28/08/95: SÍNDROME DA VIOLÊNCIA
AFUGENTA OS TORCEDORES / PAIS PROÍBEM OS FILHOS DE IR AOS ESTÁDIOS ASSISTIR
FUTEBOL. Dois exemplos de isolamento.
A isenção pessoal e política talvez seja uma das formas de
fuga / esquiva mais comumente encontradas entre nós. Cotidianamente nos
deparamos com ela, nos outros e em nós. Em O Estado de São Paulo, na mesma
reportagem já citada sobre chacinas, o jornalista escreve: "O temor
entre os moradores do J. S. Antônio, em Francisco Morato,
cresce assim que ouvem a frase: 'o que aconteceu?'. É a senha do pavor:
ninguém viu, sabe, ouviu. Para se fechar no silêncio, a polícia suspeita até
que há um subterfúgio. Trata-se do fato de testemunhas ou sobreviventes
apontarem os matadores como 'encapuzados' - o que elimina a chance de um
posterior reconhecimento. "
b) Desistindo do que está a nossa volta: a violência
produz como forma de fuga / esquiva o abandono da família, da escola, da
sociedade; desistimos dos ambientes nos quais somos submetidos a controle
aversivo e das pessoas que nos controlam aversivamente. Ainda na mesma
notícia de O Estado de São Paulo, podemos ler. "Boa parte das pessoas
que poderiam colaborar com as investigações sumiu da cidade."
Em entrevista para O Estado de São Paulo, em 26/07/95,
lemos o relato de uma história muito conhecida entre nós e que tomamos como
apenas mais uma história: um menino de 12 anos, que mora na rua há 3 anos e
diz assaltar pessoas em carros "armado" de caco de vidro, quando
perguntado por seus pais responde: "Eles não ligam para mim. Meu pai
bebe o dia inteiro. Quando apareço lá em casa, no Taboão, minha mãe quer
saber se tenho dinheiro. ( .. ) Faz muito tempo que não vou lá".
c) Buscando destruir, se pudermos, as fontes de coerção: sob
controle aversivo emitimos respostas de fuga / esquiva que, quando possível,
assumem a forma de ataque à fonte de coerção. Sob coação, tendemos a atacar
aquele que nos coage e, tendemos a fazê-lo com toda a intensidade de que
somos capazes. Pior ainda, qualquer estimulação aversiva, ainda que não se
dirija diretamente a nós, pode produzir respostas de agressão. Tendemos a
reagir com o ataque, indiscriminadamente, à tudo aquilo que estiver
relacionado à estimulação aversiva. São indicativos disto: o depoimento de
uma mulher que sofreu tentativa de assalto por parte de um menino:
"Quando abaixei para pegar (a carteira) ele bateu a pedra no vidro (do
carro) e disse que ia estourar minha boca. Eu o ameacei e ele quase me
acertou" (FSP, 21/07/95); a descrição feita por um menino de 12 anos,
que assalta motoristas com caco de vidro "enquadrei uma garota e um cara
que tava num carro atrás saiu com um porrete e bateu na minha cabeça, nas
costas e no meu braço. Bateu bastante e cortei a mão com o vidro. O homem tava
furioso e saí dali bem depressa." (OESP, 26/07/95)
Os relatos sobre motins, tão freqüentes na imprensa,
parecem também indicativos desta forma de fuga / esquiva: REBELIÃO EM SÃO PAULO MATA
CARCEREIRO. Uma tentativa de fuga seguida de rebelião (...) causou a morte de
um agente de segurança e feriu outros 3 / COMPLEXO TEM QUINTO MOTIM EM 95. O
complexo penitenciário enfrenta seu 5º motim este ano, 3 deles ocorridos em março. A primeira
rebelião, no dia 1º de março aconteceu na casa de detenção ( ... ) no mesmo
dia 770 detentos (...) fizeram nova rebelião (...) Eles trocaram tiros com a
polícia, queimaram colchões e colocaram fogo em áreas do presídio. (...)
Quatro dias depois (...) dois detentos tentaram fugir. (FSP, 21/06/95)
2.4. O uso da violência nos torna sujeitos amargos,
vivendo uma vida amarga:
Uma análise detalhada das situações de controle aversivo
nos revela que outras alterações podem ser identificadas no repertório
comportamental, além das respostas de fuga e esquiva.
a) Sob controle aversivo não podemos deixar de estar
vigilantes. Esta vigilância nos coloca em uma posição que impede a
aprendizagem de qualquer outra coisa. Nosso único critério de sucesso é nossa
efetividade em reduzir ou evitar a coerção. Tornamo-nos cativos do nosso
medo. Em matéria da Folha de S Paulo, de 26/09/93, há o relato de um homem de
42 anos que reagiu a um assalto e acabou matando um dos assaltantes.
"Vive até hoje assustado com a idéia de que os assaltantes voltarão para
vingar o colega morto. Deixou o bairro, mudou-se para um apartamento, depois
para um pequeno prédio, onde procura ser o mais discreto possível. Nunca mais
passou pelo bairro onde morava. Não sai à noite, e só usa carro de segunda,
para não chamar a atenção".
b) Sob controle aversivo não exploramos o mundo.
Desenvolvemos um repertório comportamental estreito e limitado, temos medo de
explorar o mundo, tememos as novidades. Perdemos a oportunidade de mudar, de
explorar contingências, a vida torna-se uma monótona repetição. É o que nos
conta dona Neusa, uma senhora aposentada que mora em uma região em Fortaleza,
próxima de um ponto de encontro de gangues, que relata que, há um ano não sai
de casa à noite, já não conversa com suas vizinhas na porta de casa, costume
que mantinha desde há 25 anos quando passou a morar no bairro: "Agora
meu único divertimento é ficar sentada assistindo TV, como uma
paralítica." (FSP, 26/09/93). É o que nos conta também um jornalista,
escrevendo sobre um bairro que já presenciou várias chacinas: "À cada
morte os habitantes acabam estabelecendo hábitos cada vez mais cuidadosos. Um
jovem de 15 anos que vive na região relata: Não ando mais sozinho e sou
obrigado a ir da escola direto para casa" (OESP, 23/04/95).
c) Sob controle aversivo só conseguimos dar conta de uma
rotina pré-estabelecida. Os comportamentos de fuga e esquiva se tomam
estereotipados, mecânicos e compulsivos. Não podemos correr o risco de variar
exatamente aquela estratégia que sempre nos livrou do perigo e da dor. A
repetição, a estereotipada, parecem ser o único porto seguro. Uma mulher, que
experienciou três assaltos no carro e um, em sua casa, em que seu marido
conseguiu acionar o alarme e os ladrões renderam-se à polícia, relata, dois
anos depois do último assalto: "Até hoje preciso de tranqüilizantes para
dormir, acho que vou precisar sempre. ( .. ) A idéia de que o alarme possa
vir a falhar me deixa apavorada. Se por algum motivo ele dispara durante a
noite sinto que eles já estão subindo as escadas, que vai começar tudo de
novo. Essa sensação de apavoramento eu sinto todas as noites." O
jornalista relata que o sistema de segurança da casa que já era sofisticado
foi reforçado: O funcionamento dos dispositivos é checado todas as noites.
"Ainda assim, quando vou deitar, entrego a casa a Deus". (FSP,
26/09/93)
d) Sob controle aversivo comportamentos supersticiosos
tomam-se muito prováveis. Os comportamentos de fuga e esquiva dificultam a
exploração e a emissão de respostas alternativas, bem como, aquelas
respostas, que, acidentalmente, estão associadas com respostas de esquiva
efetivas, se fortalecem, gerando comportamento supersticioso de difícil
extinção. Tornamo-nos frágeis e crédulos. Assim interpretamos o relato de um
jovem, cujo irmão morreu em assalto, que afirma jamais sair à noite sem o par
de tênis que o irmão usava quando do assalto. Diz ele: "É uma homenagem
ao meu irmão. Ele perdeu a vida lutando por este tênis (..) este tênis para
mim é sagrado. Quando estou com ele, sinto que estou com Míchel. Não tenho
medo nenhum." (FSP, 26/09/93)
Em síntese, como nos ensina Sidman (1989), sob controle
aversivo, ou num mundo violento, vivemos em contínuo estado de ansiedade e
temos por companhia todas as alterações orgânicas que podem compor o estado
de ansiedade: desenvolvemos úlceras, temos cólicas intestinais, palpitações,
dores de cabeça, ataques cardíacos e estresses. Tememos todo e qualquer
contato com nosso ambiente - físico e social. A apreensão nos acompanha todo
o tempo, até mesmo nas situações aparentemente inócuas. Transformamo-nos em autômatos. Tornamo-nos
doentes, neuróticos. Transformamo-nos em indivíduos negativos e inflexíveis.
Não somos criativos, raramente fazemos o inesperado, qualquer opção nos
assusta. Os sentimentos de medo e ódio tornam-se comuns, cotidianos, aparecem
nas situações mais simples e se expandem em todas as direções.
E, por fim, quando nenhuma forma de fuga / esquiva for
possível, só nos restará fugir de nós mesmos. Em 17/09/95, Jânio de Freitas
apresenta dados sobre suicídios de índios no Mato Grosso do Sul. São 183
suicídios em 10 anos, 36 dos quais neste ano. Ao se referir aos "150
milhões de civilizados", que o suicídio de uma menina índia de 10 anos
denunciaria, Jânio de Freitas parece indicar que a coerção, as privações
impostas aos índios, têm que ser encaradas de frente, como única alternativa
de explicação e de intervenção. (FSP, 17/09/95).
Uma onda de suicídios entre funcionários do Banco do
Brasil foi notícia no Jornal Brasil agora. Foram 13 suicídios, em seis meses,
pelo menos um, na agência, diante dos colegas de trabalho. Sindicalistas têm
associado a pressão econômica na qual vivem os funcionários a estes
episódios.
Além de todas as conseqüências do controle aversivo até
aqui levantadas, que por si já são catastróficas, Sidman analisa o que
considera um dos efeitos mais terríveis da esquiva. Uma vez instalado, o
comportamento de esquiva pode ser mantido indefinidamente, desde que o agente
controlador, eventualmente e assistematicamente, libere estímulos aversivos
ao acaso. Não seria este o caso, quando, depois de "controlada" a
rebelião, no Carandiru a polícia colocou todos os homens nus (o que parece
ser norma nestas situações) em um pátio, para proceder a ainda mais uma
revista? Ou, o que explicaria a constatação de que trabalhadores sem terra
que ocupavam uma fazenda tenham sido mortos pela polícia, pelas costas,
depois de rendidos, na frente de seus companheiros? Ou, não seria este tipo
de controle o objetivo da polícia quando invadiu, sem aviso, uma favela, à
noite, encapuzada e entrou ao acaso em casas matando aqueles que encontrava,
afirmando estar à cata de marginais traficantes? Não seria o objetivo destas
"ações policiais" manter a submissão e o medo? De qualquer forma,
foi isto que gerou. Diz um morador de Vigário Geral: "fingimos para nós
mesmos que dormimos, o medo tira o sono". Relata outro: "Eu ouvi os
tiras e os assovios. Nem me mexi para eles não ouvirem o barulho da
cama." Ainda outro: "O silêncio e o medo eram tão grandes, que nem
os cachorros latiram de madrugada, pela primeira vez em Vigário Geral".
(Folha de S Paulo, 26/09/93).
As contingências de controle aversivo só podem ser
mantidas quando a possibilidade de controle é assimétrica; quando uma das
partes em interação tem acesso e poder para liberar estimulação aversiva, que
a outra parte não detém. Nas instituições fechadas e, talvez, especialmente,
nas instituições que fundamentam por princípio todo seu controle em
contingências aversivas, em coerção e coação, um produto quase que inevitável
é que este controle seja exacerbado para muito além daquilo que de início foi
pactuado. Quando a polícia se confunde com o bandido, usando de seu poder
para cometer crimes. associando-se aos chamados criminosos, protegida por
suas armas, sua corporação e pelo medo que desperta, estamos diante de um caso
deste tipo. Quando uma força policial entra quase que em combate físico com
outra força policial, para impedir a execução de uma ordem judicial, estamos
diante de um caso extremo em que aqueles que deveriam fazer cumprir a lei a
ela se contrapõem, baseados em supostos interesses da corporação e ainda
lutam com a outra instituição que tem os mesmos objetivos (Folha de S Paulo,
13/07/95).
A consciência moral produzida como conseqüência do
controle aversivo gera um duplo padrão: aqueles que, dada a distribuição de
poder na sociedade, são submetidos a controle aversivo mais do que controlam
aversivamente, têm mais a perder por burlar a lei. Aqueles que detêm a maior
possibilidade de controle aversivo mais facilmente podem burlar a lei. Este
duplo padrão se revela nas mordomias concedidas aos bicheiros, ou a P.C.
Farias, ou a policiais detidos por crimes comuns, enquanto que presos
"comuns" vivem em celas onde sequer há lugar para dormir,
tornando-se "homens morcego"; presos que se deixam amarrar por
companheiros para que possam dormir no único espaço disponível: pendurados
nas grades da cela (Folha de São Paulo, 21/05/93). Ou, este duplo padrão é
tornado explícito nos julgamentos especiais, pela justiça militar, de
policiais acusados de crimes comuns, enquanto que bandidos menos protegidos
denunciam torturas nas delegacias do país, sem que jamais se consiga sequer
que tais denúncias sejam investigadas.
Por que diante de tantos efeitos, de tantos problemas, nos
mantemos participando e construindo um mundo violento, um mundo de relações
coercitivas? Em primeiro lugar, porque estes efeitos do controle aversivo são
atrasados, em segundo lugar, porque o simples conhecimento destes efeitos não
suplanta os efeitos imediatos do controle.
Além disso, em um mundo hierarquizado, sem distribuição
equitativa de reforçadores, segundo Holland (1978), as contingências de
controle aversivo são necessárias, tornam-se como que a segunda natureza das
relações sociais e das interações entre os homens, indispensáveis para a
manutenção desta desigualdade e, inclusive, para a manutenção de esquemas de
"refoçamento positivo".
Esta distribuição desigual de reforçadores e a desigual
intensidade das contingências aversivas, exige ainda uma concepção de homem
que atribua ao indivíduo, à sua consciência, as causas da desigualdade, da
violência. Um conjunto de idéias que divida cada pessoa em atos e causas
destes atos e que divida as pessoas em vítima e algoz. Este tipo de concepção
possibilita atribuir a violência a causas inatas, ou a causas imutáveis,
implica, assim, uma postura quase que contemplativa diante da violência, uma
vez que a violência é naturalizada, é vista como parte da natureza humana. Ao
mesmo tempo, o controle da violência é abordado e discutido com argumentos
morais. As perguntas que dirigem a discussão são: quando a violência é justa
e como tratar com justiça a violência.
Entre nós, psicólogos, esta concepção de homem merece uma
especial atenção, já que ela está presente no conhecimento que produzimos e
difundimos e, mais grave talvez, com o status de especialistas que nos é
atribuído, este conhecimento e as ações dele derivadas tenderão a ser vistos
como contendo soluções preferenciais. Como enfrentaremos "soluções"
que compactuam com o problema? O que teríamos a dizer, ou a fazer, diante de
um cartaz que anuncia o seguinte serviço : "Auto defesa psíquica e
visualizações curadoras". E para vender seu produto, pergunta:
"Você não estaria sendo vítima de um ataque psíquico?" Sugerindo a
seguir: "Pare e pense ... Aprenda a defender-se no curso AUTO DEFESA
PSÍQUICA E VISUALIZAÇÕES CURADORAS.
Como analistas do comportamento precisamos reconhecer que
fazemos parte destas contingências. Os nossos sentimentos de impotência, a
nossa inação, contraditoriamente, podem ser conseqüência da possibilidade que
temos de analisar toda a complexidade do fenômeno que chamamos violência. E
este talvez seja nosso primeiro problema. Que contingências nos fariam passar
do conhecimento à ação?
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