Maria Helena Leite Hunziker - Universidade de São
Paulo
A idéia de se investigarem modelos animais de
psicopatologias tem sido justificada pela enorme contribuição que tais modelos
trariam para a compreensão dessas disfunções humanas. Em princípio, supõe-se
que o controle e a manipulação de variáveis ambientais e orgânicas, só
possíveis num estudo experimental com animais, podem auxiliar na identificação
das causas dessas patologias, no teste de diferentes procedimentos terapêuticos
e profiláticos (Keehn, 1979; Willner, 1991). Portanto, esses modelos teriam uma
contribuição tanto a nível teórico como prático.
Apesar dessa enorme contribuição potencial, a simples
idéia de se buscar em animais algum conhecimento sobre psicopatologias é
rejeitada por boa parte dos profissionais da Psicologia e ciências afins. É
necessário, portanto, destacar que a crença na contribuição desses modelos
animais está baseada em um pressuposto filosófico que não tem aceitação
generalizada: o de que os comportamentos humano e animal fazem pane de um mesmo
contínuo e, portanto, são sujeitos a processos básicos semelhantes.
Tal pressuposto, baseado no pensamento darvviniano, fica geralmente restrito ao universo biológico: animais vem sendo amplamente utilizados nas investigações da medicina, biologia e farmacologia, entre outras ciências, sem que isso cause grandes questionamentos filosóficos sobre a generalidade dos resultados obtidos ou da utilidade de tais estudos. Porém, quando se entra no terreno da Psicologia, o pensamento darvviniano encontra resistência. O ponto conflitante está no pressuposto predominante na Psicologia de que o ser humano é essencialmente distinto do restante dos animais em função de que apenas ele tem, além do corpo, a mente. Esse dualismo mente/corpo justifica que a maior pane das diferentes correntes teóricas dentro da Psicologia estabeleça a mente como seu objeto de estudo ou, ao menos, como a variável crítica que intermedia todos os comportamentos humanos .
Tal pressuposto, baseado no pensamento darvviniano, fica geralmente restrito ao universo biológico: animais vem sendo amplamente utilizados nas investigações da medicina, biologia e farmacologia, entre outras ciências, sem que isso cause grandes questionamentos filosóficos sobre a generalidade dos resultados obtidos ou da utilidade de tais estudos. Porém, quando se entra no terreno da Psicologia, o pensamento darvviniano encontra resistência. O ponto conflitante está no pressuposto predominante na Psicologia de que o ser humano é essencialmente distinto do restante dos animais em função de que apenas ele tem, além do corpo, a mente. Esse dualismo mente/corpo justifica que a maior pane das diferentes correntes teóricas dentro da Psicologia estabeleça a mente como seu objeto de estudo ou, ao menos, como a variável crítica que intermedia todos os comportamentos humanos .
Assim, se se considera que o comportamento humano é
determinado pela mente, e se a mente é própria do Homem, a proposição de
modelos animais de psicopatologias se torna absurda pois seria estar buscando
em animais processos que são próprios do ser humano.
Embora a maior parte dos estudiosos em Psicologia adote
essa filosofia dualista, há os que analisam o comportamento, tanto humano como
animal, como resultante da interação entre o organismo e o meio ambiente, sem
utilizar nessa análise a intermediação do constructo "mente".
Seguindo essa filosofia, o princípio darvviniano de seleção das características
dos organismos pelo ambiente foi ampliado para o de seleção do comportamento
pelas conseqüências, tanto na sua ontogênese como na sua filogênese (Skinner,
1974, 1984). Desse ponto de vista, o comportamento seria fruto tanto da seleção
pelo ambiente no qual o indivíduo vive (história individual), como da seleção
ocorrida no ambiente ao qual sua espécie foi exposta e que lhe legou uma
herança genética específica. Sendo as espécies geneticamente diferentes, elas
necessariamente tem comportamentos diferentes, mas muitas são sujeitas aos
mesmos processos de alteração do seu comportamento pela interação com o meio
ambiente. Portanto, sem deixar de levar em conta as profundas diferenças
existentes entre as espécies, esse posicionamento monista - minoritário, mas
também integrante do pensamento psicológico - permite que se busquem em animais
alguns dos processos básicos do comportamento humano. É a partir desse
referencial filosófico que se justifica a proposição de modelos animais de
psicopatologias.
Depressão e modelos animais
A depressão é uma psicopatologia que vem sendo
bastante investigada em
laboratório. Muitos modelos animais de depressão já foram
propostos, mas poucos mantiveram uma credibilidade que justifica seu uso por
diferentes grupos de pesquisa. Como exemplo disso, Willner (1984) analisou 18
dos modelos animais de depressão mais conhecidos e concluiu pela validade
relativa de apenas poucos deles.
A análise dos modelos passa por critérios objetivos de
validação propostos por alguns pesquisadores como forma de selecionar os mais
adequados para a investigação científica. Embora esses critérios possam sofrer
variações, em geral espera-se que haja entre o modelo e a psicopatologia uma
similaridade quanto à etiologia, bases bioquímicas, sintomatologia e tratamento
(Willner, 1985, 1991).
Na prática, nem sempre é simples a avaliação de todos
esses aspectos. Por exemplo, quanto a sua etiologia há indícios de que a
depressão humana tenha tanto causas genéticas como ambientais. Da mesma
maneira, os estudos sobre as bases bioquímicas da depressão fornecem dados
conflitantes sobre a importância de disfunções nos sistemas de neurotransmissão
noradrenérgica e serotoninérgica, além de outros. Portanto, o critério de
similaridade a esses níveis fica dependente da evolução do conhecimento em
diferentes áreas, inclusive a clínica.
A análise da similaridade dos sintomas é igualmente
complexa: não apenas a sintomatologia da depressão é muito variada como nenhum
dos sintomas descritos, inclusive o humor deprimido, é essencial para a
classificação do estado depressivo (Willner, 1991). Havendo vários
"tipos" de depressão com sintomatologia distinta, qual deles deveria
estar sendo mimetizado pelo modelo? Além disso, se a classificação existente se
mostra muitas vezes inadequada para a análise da depressão humana, qual o
referencial para comparação com o modelo animal? Uma rápida análise dos
sintomas de depressão apontados no DSM-III - sistema de classificação das
desordens psiquiátricas desenvolvido pela American Psychiatric Association, em
1980 - revela que muitos desses sintomas são totalmente subjetivos: tristeza,
pessimismo, sentimentos de impotência diante de dificuldades corriqueiras,
auto-reprovação ou sentimentos exagerados de culpa, pensamentos suicidas. Uma
vez que esses sintomas são impossíveis de serem avaliados em animais, restam
para análise da similaridade de sintomas apenas as alterações comportamentais
que podem ser objetivamente avaliadas, tais como perda da motivação ou
insensibilidade aos reforçadores, baixa atividade locomotora, redução da
atividade sexual, distúrbio de sono, redução da ingestão alimentar e perda de
peso. De qualquer maneira, a similaridade de sintomas não é um aspecto
conclusivo do modelo já que dependendo do caso de depressão humana eles podem
até ser opostos ao esperado: por exemplo, pode-se observar aumento de fome e do
sono na depressão sazonal (Graeff, 1989) ou hiperagitação em alguns casos de
depressão endógena (Willner, 1991).
Por fim, a análise sobre a similaridade de tratamento
tem sido centrada, com raras exceções, na farmacoterapia: o esperado é que um
bom modelo animal de depressão responda seletivamente a drogas antidepressivas,
mas não a outras drogas psicoativas, mimetizando os efeitos da farmacoterapia
observados na maioria dos pacientes deprimidos. Entretanto, nem mesmo essa
análise é muito simples. Como é sabido, uma parcela considerável dos pacientes
deprimidos não responde a tratamentos farmacológicos. Além disso, não é raro
que a depressão venha associada à ansiedade, sendo que nesses casos as drogas
ansiolíticas podem ter algum efeito terapêutico. Conseqüentemente, também não
se pode adotar esse critério isoladamente como definidor de um bom modelo
animal de depressão.
Em suma, parece ser impossível que um único modelo
animal abarque toda a complexidade de uma psicopatologia que é, em si mesma,
multifacetada. Não existindo a depressão, como esperar que possa existir o
modelo? A tendência atual é considerar que cada modelo pode ter utilidade para
a investigação de alguns dos aspectos da depressão, o que já é uma grande
contribuição para se conhecer melhor essa psicopatologia. Nesse sentido, alguns
modelos podem se mostrar mais adequados para o teste de drogas antidepressivas,
outros para as investigações das causas indutoras dos quadros depressivos, etc.
De qualquer maneira, um modelo mostra-se tanto mais útil quanto mais aspectos
da depressão abranger, ou seja, quanto mais critérios de validade atender (ver
Willner, 1991, para uma discussão ampla a esse respeito).
Desamparo Aprendido
O desamparo aprendido (learned helplessness effect)
foi proposto como modelo animal de depressão há quase duas décadas (Seligman,
1975) sendo desde então bastante utilizado em diferentes tipos de pesquisa
(Overmier & Hellhammer, 1988). Embora o estudo do desamparo tenha se
originado de investigações voltadas para a análise de interações entre contingências
respondentes e operantes (Maier, 1989), a partir da sua associação com a
depressão ele passou a ser amplamente utilizado como um modelo para o teste de
drogas e alterações bioquímicas, ficando a análise funcional desse
comportamento relegada a segundo plano. Conforme discutiremos mais adiante,
esse abandono da análise funcional do desamparo reduziu o potencial de
contribuição desses estudos para a compreensão do comportamento em geral, e da
possível similaridade do desamparo com a depressão humana.
O estudo do desamparo se destaca pela análise da
história passada como um evento crítico na determinação do comportamento
presente. Na maioria dos estudos com animais, o desamparo tem sido
caracterizado pela dificuldade de aprendizagem operante apresentada por
sujeitos submetidos previamente a eventos incontroláveis (não-contingentes).
Via de regra, esses eventos correspondem a estímulos aversivos (geralmente
choques elétricos) cuja ocorrência independe do comportamento do sujeito. A
dificuldade em aprender tem sido avaliada comparando-se o comportamento desses
sujeitos frente a contingências operantes (principalmente de fuga ou esquiva)
com o comportamento de sujeitos previamente submetidos a choques controláveis
ou a nenhum choque: nessa comparação, maiores latências das respostas de
fuga/esquiva, ou a não aprendizagem dessas respostas, caracteriza o desamparo.
Num experimento protótipo, três grupos de animais são
colocados individualmente em caixas experimentais idênticas onde permanecem
pelo tempo de uma sessão, durante a qual dois deles recebem choques
provenientes de uma mesma fonte e um terceiro não recebe choques. Da dupla
tratada com choques, apenas um animal pode desligá-los emitindo uma resposta
previamente selecionada, controlando dessa maneira a duração dos choques para
si e para o seu parceiro, para o qual os choques são incontroláveis. Portanto,
essa tríade permite que se analise tanto os efeitos dos choques em si como os
efeitos da possibilidade (ou não) de controle sobre os mesmos. Vinte e quatro
horas após essa sessão, todos os animais são submetidos a uma contingência de
fuga ou esquiva. O resultado padrão é uma maior latência de fuga/esquiva
apresentada pelos animais submetidos aos choques incontroláveis, sendo que
tanto os animais expostos aos choques controláveis como os não submetidos aos
choques não diferem entre si. Em função desses resultados, a incontrolabilidade
dos choques, e não os choques em si, vem sendo apresentada como a variável
crítica para a ocorrência desse efeito comportamental uma vez que não se
observa a dificuldade de aprendizagem pelos sujeitos expostos aos choques
controláveis (Overmier & Seligman, 1967; Seligman & Maier, 1967).
Diferentes formulações teóricas foram apresentadas
para explicar o desamparo, sendo que a maioria delas propõe que a experiência
com os choques incontroláveis tem como efeito principal tornar o sujeito menos
ativo. Essa inatividade pode ser aprendida através de contingências acidentais
supostamente presentes na condição de incontrolabilidade (Bracewell &
Black, 1974; Glazer & Weiss, 1976; Levis, 1976), ou pode ser decorrente da
depleção de alguns neurotransmissores cerebrais que reduziria a atividade
motora do sujeito (Anisman, lrwing & Sklar, 1979; Weiss, Glazer &
Pohorecky, 1976; Weiss, Glazer, Pohorecky, Brick & Miller, 1975). Aprendida
ou imposta bioquimicamente, a inatividade teria como conseqüência dificultar a
inicializacão da resposta de teste, reduzindo o contato do sujeito com a
contingência operante. Em suma, essas hipóteses sugerem que a dificuldade de
aprendizagem operante observada nesses estudos é meramente um subproduto da
baixa atividade locomotora dos animais e não um processo de aprendizagem em si.
Entretanto, a hipótese que ganhou maior projeção na
análise desse fenômeno não atribui à inatividade um papel crítico. Segundo
alguns autores, os indivíduos submetidos à incontrolabilidade aprendem que os
eventos do meio ocorrem independentemente do seu comportamento e essa
aprendizagem interfere na aprendizagem oposta de fuga ou esquiva (Maier &
Seligman, 1976; Seligman, Maier & Solomon, 1971). Essa hipótese recebeu o
mesmo nome do fenômeno que se propõe a explicar (learned helplessness
hypothesis) o que gera muitas vezes confusão entre o fenômeno e a sua
explicação. Apesar dessa mistura indesejável, esta é a única formulação teórica
que analisa o desamparo diretamente como um processo de aprendizagem
associativa e não como subproduto de outros processos, análise essa que tem se
revelado mais consistente com os dados experimentais que a proposta de
inatividade (Maier & Seligman, 1976; Maier, 1989). É também a hipótese do
desamparo aprendido que justifica a proposição desse fenômeno comportamental
como um modelo de depressão humana (Overmier & Helhammer, 1988; Seligman,
1975).
O desamparo aprendido foi inicialmente sugerido como
modelo de depressão reativa ou exógena devido às semelhanças de sintomatologia,
etiologia, cura e prevenção (Seligman, 1975). Embora essa proposta tenha sido
feita poucos anos após o primeiro relato de desamparo com animais, pode-se
dizer que os trabalhos experimentais que a seguiram trouxeram uma grande
quantidade de informações que, de uma maneira geral, sustentam a sua
credibilidade como um dos melhores modelos de depressão em uso, embora não
exista um consenso sobre que tipo de depressão é mimetizada pelos animais
desamparados. A favor do desamparo mimetizar a depressão reativa existe, além
do fator desencadeante ambiental, o fato de que o comportamento pode ser
revertido forçando-se o sujeito a emitir a resposta de fuga o que, segundo
alguns autores, poderia ser análogo a intervenções psicossociais tipo
psicoterapia (Seligman, Maier & Geer, 1968; Seligman, Rosellini &
Kozak, 1975). Entretanto a sua sensibilidade diferencial a tratamento com
drogas antidepressivas (Sherman, Sacquitne & Petty, 1982) aponta na direção
da depressão endógena uma vez que se relata que a depressão reativa responde
pouco ao tratamento farmacológico (Graeff, 1989). Da mesma maneira, outras
características do animal desamparado - tais como passividade, baixa atividade
locomotora, piora no desempenho mantido por contingências de reforçamento
positivo, redução de comportamentos agressivos, perda de apetite e elevação dos
níveis de corticosteroides - também são freqüentemente associados à sintomatologia
da depressão endógena ou à fase depressiva da PMD. Portanto, a afirmação de que
o desamparo mimetiza a depressão exógena, bem aceita nos trabalhos iniciais, é
hoje olhada com cautela.
Essa dificuldade de se determinar o tipo de depressão
que é mimetizado pelo desamparo torna-se pouco relevante frente à tendência
crescente de se considerar que mesmo em humanos nem sempre é possível se fazer
uma distinção exata dos diferentes subtipos de depressão. Mais relevante parece
ser a análise das similaridades freqüentemente observadas entre os animais
desamparados e diferentes tipos de pacientes deprimidos. Entre elas observa-se
nos animais desamparados, além das características comportamentais já citadas,
a depleção dos neurotransmissores noradrenalina (NA) e serotonina (5-HT)
(Anisman, lrwing & Sklar, 1979; Weiss e cols., 1975; Weiss, Glazer &
Pohorecky, 1976), coincidente com as principais teorias sobre a bioquímica da
depressão (Graeff, 1989). Diferentes trabalhos têm demonstrado que drogas
agonistas de NA e 5-HT são efetivas para impedir o desamparo em animais
(Graeff, Hunziker & Graeff, 1989; Sherman, Sacquitne & Petty, 1982),
enquanto antagonistas desses neurotransmissores simulam o desamparo (Anisman
& Zacharko, 1982). Nesse sentido, o efeito obtido com a imipramina, que é
um dos antidepressivos mais utilizados clinicamente, pode ser um argumento a
favor da analogia entre desamparo e depressão (Petty & Sherman, 1979).
Outro exemplo de características dos animais desamparados que coincidem com as
de pacientes deprimidos é a imuno-supressão (Laudendlager, Ryan, Drugan, Hyson
& Maier, 1983; Mormede, Dantzer, Michaud, Kelley & Moa’, 1988).
Se esse conjunto de resultados sugere para alguns a
validação do desamparo aprendido como modelo de depressão, para outros ele é
insuficiente. Segundo Willner (1986, 1991), a proposta do desamparo como modelo
de depressão baseia-se em três asserções que são controvertidas: 1) os animais
submetidos aos eventos aversivos incontroláveis tornam-se desamparados em
função da aprendizagem de independência entre seu comportamento e os eventos do
meio; 2) pessoas submetidas à incontrolabilidade desenvolvem uma aprendizagem
similar, tornando-se desamparadas; 3) o desamparo (ou a crença na independência
entre comportamento e eventos do meio) é o sintoma central da depressão em humanos. Para Willner ,
a primeira asserção só se sustenta na hipótese do desamparo aprendido, sendo
contestada pelas demais hipóteses explicativas que apontam a inatividade como a
variável crítica; a segunda asserção baseia-se na teoria do desamparo
reformulada para humanos (Abranson, Seligman & Teasdale, 1978) onde a
variável crítica passa a ser a atribuição que o indivíduo faz das suas falhas,
não bastando a simples experiência com a incontrolabilidade, o que torna praticamente
impossível seu teste com animais; por fim, a terceira asserção fica
comprometida por resultados experimentais que sugerem que nem sempre a
atribuição depressiva implica numa maior probabilidade de depressão. Apesar
dessa argumentação de Willner ser bastante criteriosa, ela pode ser
questionada, ao menos em pane, pelo fato dele recorrer às hipóteses da
inatividade, as quais têm sido cada vez mais descartadas como explicações
convincentes do desamparo. O que se pode dizer é que no atual estágio de
investigação predomina na literatura a idéia de que o desamparo tem sido um
modelo comportamental bastante útil no estudo experimental da depressão.
Apesar disso, a análise da maioria dos trabalhos
publicados sobre desamparo aprendido revela uma surpreendente falta de rigor
tanto conceitual (na classificação do efeito em si) como metodológica (nos
procedimentos empregados para a sua produção). O uso do desamparo como um mero
modelo, sem uma análise funcional do comportamento estudado, tem gerado um grande
número de trabalhos cujos processos comportamentais chamados de
"desamparo" dificilmente poderiam ser considerados equivalentes. Por
exemplo, apesar do desamparo ser definido como a dificuldade ou falha de
aprendizagem instrumental em função da experiência prévia com eventos aversivos
incontroláveis, a maior pane dos trabalhos relatados não leva em conta esse
aspecto de aprendizagem: a diferença de latência de fuga e/ou esquiva entre os
grupos não encobre o fato de que os animais não submetidos aos choques
incontroláveis freqüentemente não apresentam padrão de aprendizagem (Alloy
& Bersh, 1979; Jackson, Maier & Rapaport, 1978, experimento lA; Maier
& Jackson, 1977; Maier & Testa, 1975; Seligman, Rosellini & Kozak,
1975, experimento 2). Ou seja, se o desamparo é por definição uma interferência
num processo de aprendizagem operante em função de uma história passada
específica, o mínimo a se esperar é que essa aprendizagem seja claramente
observada em animais que não tiveram tal história. Sem essa demonstração, os
comportamentos observados não podem ser chamados de desamparo.
A falta de rigor conceitual e metodológico tem gerado
resultados que levam a equívocos na análise teórica do fenômeno. Como exemplo
disso, pode-se citar dois conjuntos de resultados que geraram problemas na
validação e interpretação teórica do fenômeno, e posteriormente se revelaram
fruto da imprecisão metodológica: 1) a dificuldade de replicação do desamparo
com ratos (os trabalhos iniciais foram com cães), que sugeriu por algum tempo a
sua baixa generalidade como processo básico entre espécies, e 2) o fato do
desamparo não ser observado após 48 horas da experiência com a
incontrolabilidade (Overmier & Seligman, 1967; Weiss e cols., 1992), o que
dificultava sua análise como um fenômeno decorrente de processos associativos,
ou mesmo da sua equivalência à depressão humana uma vez que o diagnóstico de
depressão do DSM-III requer que a sintomatologia permaneça pelo menos durante
duas semanas (Willner, 1991). Hoje sabe-se que o desamparo ocorre tanto em
ratos como nas mais diferentes espécies (Overmier & Hellhammer, 1988), após
diferentes intervalos da experiência com a incontrolabilidade (por exemplo,
Damiani, Costa, Machado & Hunziker, 1992).
As primeiras replicações com ratos foram obtidas quando
se utilizou como contingência de fuga o esquema de reforçamento em FR2 para a
resposta de correr na shuttlebox (Maier & Testa, 1975) e em FR3 para a
resposta de pressão à barra (Seligman, Rosellini & Kozak, 1975). Ambas as
contingências foram propostas em substituição à contingência de FRI na
shuttlebox, empregada inicialmente por ser análoga à utilizada com cães, porém
sem sucesso com ratos. Embora esses pesquisadores tenham adaptado a
contingência de fuga para os ratos considerando as diferenças entre as
espécies, é curioso notar que a "solução" apresentada por eles não
levou em conta o requisito mínimo de demonstrar que os animais ingênuos
aprendem a resposta de fuga: ambas as contingências produzem, nos animais
ingênuos, latências constantes ou progressivamente maiores ao longo da sessão
de fuga, o que é o oposto do esperado nesse processo de aprendizagem. Nesses
trabalhos, o fato dos animais submetidos aos choques incontroláveis terem
apresentado latências mais altas que os sujeitos ingênuos foi considerado
suficiente para caracterizar o desamparo. Essa imprecisão de medida do processo
de aprendizagem operante está igualmente pressente nos trabalhos que
investigaram a ocorrência do desamparo após 48 horas desde os choques
incontroláveis, tornando pouco elucidativos os resultados a esse respeito
(Maier & Testa, 1975; Seligman Rosellini & Kozak, 1975). Apesar disso,
essas contingências de fuga e/ou esquiva continuam sendo adotadas pela maioria
dos pesquisadores do desamparo (ver, por exemplo, Maier, 1989).
A análise da inadequação desses procedimentos
experimentais motivou uma série de investigações estabelecendo contingências
mais precisas, tendo sido obtidos resultados sistemáticos de desamparo com
ratos em condições onde os animais ingênuos apresentaram um típico padrão de
aprendizagem de fuga. Basicamente, foi estabelecida uma contingência de fuga
onde a possibilidade de interação entre contingências operantes e respondentes,
conflitantes entre si, foram minimizadas. Também foi reduzida a probabilidade inicial
da resposta de fuga e aumentada a quantidade de feedback sobre essa resposta
(ver análise de Hunziker, 1981). Usando-se o procedimento básico gerado por
esses experimentos, foram obtidos resultados algumas vezes destoantes da
literatura da área, porém mais consistentes com a análise do processo de
aprendizagem em estudo: 1) o desamparo foi observado igualmente após 24 ou 168
horas (ou 7 dias) dos choques incontroláveis (Damiani e cols., 1992); 2)
obteve-se igual nível de desamparo em ratos machos e fêmeas (Hunziker &
Damiani, 1992), em contraposição a relatos de que fêmeas não desenvolvem o
desamparo aprendido, ou o desenvolvem menos intensamente (Navarro e cols.,
1984; Steenbergen, Heinsbrock, van Haaren & van de Poll, 1989); 3) o uso de
sinalização pós-choques incontroláveis, semelhante à descrita por Volpicelli,
Ulm, Altenor e Seligman (1984) como suficiente para impedir o aparecimento do
desamparo, não produziu esse efeito (Damiani & Hunziker, 1992); 4) uma
única administração de naloxona (Hunziker, 1992) ou de imipramina (Graeff,
1991; Hunziker, Buonomano & Moura, 1986) impediu o aparecimento do
desamparo, contrariando outros trabalhos que descreveram a necessidade de
tratamento crônico para obter esse resultado (Hemingway & Reigle, 1987;
Petty & Sherman, 1979). Pelo fato de que todos esses trabalhos mostram, sem
exceção, padrões de aprendizagem de fuga pelos sujeitos ingênuos e latências
significantemente mais elevadas emitidas pelos sujeitos submetidos previamente
aos choques incontroláveis, pode-se assegurar a análise de um processo de
aprendizagem instrumental. Por outro lado, com os procedimentos normalmente
adotados é mais provável que se esteja medindo a atividade motora eliciada
pelos choques e não um processo associativo (Maier & Testa, 1975). Nesse
caso, os dois conjuntos de trabalhos não seriam diretamente comparáveis por
estarem investigando processos distintos.
Portanto, parece ser indispensável que o desafio de se
estabelecerem modelos animais de psicopatologias seja acompanhado de uma constante
e rigorosa análise dos processos comportamentais envolvidos. A falta dessa
análise gera o uso do comportamento como um mero instrumento de teste como se
ele não fosse uma complexa interação entre o organismo e o ambiente, o que é
falso. Nunca é demais lembrar que um instrumento equivocado gera,
necessariamente, resultados pouco confiáveis. Assim, mais importante do que a
resposta à pergunta do título desse trabalho é a constatação de que ainda há
muito a ser investigado sobre a complexidade das variáveis responsáveis pelo
desamparo aprendido. A questão teórica subjacente a esses estudos continua
sendo de grande relevância para a análise do comportamento, e o delineamento
proposto oferece um instrumental adequado para estudos rigorosos sobre as variáveis
das quais o comportamento é função. Se esses estudos somarem evidências para a
análise das similaridades do desamparo com a depressão humana, tanto melhor
para a compreensão dessa psicopatologia. Contudo, sem esse rigor metodológico
corre-se o risco de análises superficiais e, conseqüentemente, equivocadas. O
que é, no mínimo, um atraso para a ciência.
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POST: HILTON CAIO
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