terça-feira, 4 de outubro de 2011

DESAMPARO APRENDIDO: UM MODELO ANIMAL DE DEPRESSÃO?



Maria Helena Leite Hunziker - Universidade de São Paulo

A idéia de se investigarem modelos animais de psicopatologias tem sido justificada pela enorme contribuição que tais modelos trariam para a compreensão dessas disfunções humanas. Em princípio, supõe-se que o controle e a manipulação de variáveis ambientais e orgânicas, só possíveis num estudo experimental com animais, podem auxiliar na identificação das causas dessas patologias, no teste de diferentes procedimentos terapêuticos e profiláticos (Keehn, 1979; Willner, 1991). Portanto, esses modelos teriam uma contribuição tanto a nível teórico como prático.
Apesar dessa enorme contribuição potencial, a simples idéia de se buscar em animais algum conhecimento sobre psicopatologias é rejeitada por boa parte dos profissionais da Psicologia e ciências afins. É necessário, portanto, destacar que a crença na contribuição desses modelos animais está baseada em um pressuposto filosófico que não tem aceitação generalizada: o de que os comportamentos humano e animal fazem pane de um mesmo contínuo e, portanto, são sujeitos a processos básicos semelhantes.



 Tal pressuposto, baseado no pensamento darvviniano, fica geralmente restrito ao universo biológico: animais vem sendo amplamente utilizados nas investigações da medicina, biologia e farmacologia, entre outras ciências, sem que isso cause grandes questionamentos filosóficos sobre a generalidade dos resultados obtidos ou da utilidade de tais estudos.  Porém, quando se entra no terreno da Psicologia, o pensamento darvviniano encontra resistência. O ponto conflitante está no pressuposto predominante na Psicologia de que o ser humano é essencialmente distinto do restante dos animais em função de que apenas ele tem, além do corpo, a mente. Esse dualismo mente/corpo justifica que a maior pane das diferentes correntes teóricas dentro da Psicologia estabeleça a mente como seu objeto de estudo ou, ao menos, como a variável crítica que intermedia todos os comportamentos humanos .
Assim, se se considera que o comportamento humano é determinado pela mente, e se a mente é própria do Homem, a proposição de modelos animais de psicopatologias se torna absurda pois seria estar buscando em animais processos que são próprios do ser humano.
Embora a maior parte dos estudiosos em Psicologia adote essa filosofia dualista, há os que analisam o comportamento, tanto humano como animal, como resultante da interação entre o organismo e o meio ambiente, sem utilizar nessa análise a intermediação do constructo "mente". Seguindo essa filosofia, o princípio darvviniano de seleção das características dos organismos pelo ambiente foi ampliado para o de seleção do comportamento pelas conseqüências, tanto na sua ontogênese como na sua filogênese (Skinner, 1974, 1984). Desse ponto de vista, o comportamento seria fruto tanto da seleção pelo ambiente no qual o indivíduo vive (história individual), como da seleção ocorrida no ambiente ao qual sua espécie foi exposta e que lhe legou uma herança genética específica. Sendo as espécies geneticamente diferentes, elas necessariamente tem comportamentos diferentes, mas muitas são sujeitas aos mesmos processos de alteração do seu comportamento pela interação com o meio ambiente. Portanto, sem deixar de levar em conta as profundas diferenças existentes entre as espécies, esse posicionamento monista - minoritário, mas também integrante do pensamento psicológico - permite que se busquem em animais alguns dos processos básicos do comportamento humano. É a partir desse referencial filosófico que se justifica a proposição de modelos animais de psicopatologias.

Depressão e modelos animais

A depressão é uma psicopatologia que vem sendo bastante investigada em laboratório. Muitos modelos animais de depressão já foram propostos, mas poucos mantiveram uma credibilidade que justifica seu uso por diferentes grupos de pesquisa. Como exemplo disso, Willner (1984) analisou 18 dos modelos animais de depressão mais conhecidos e concluiu pela validade relativa de apenas poucos deles.
A análise dos modelos passa por critérios objetivos de validação propostos por alguns pesquisadores como forma de selecionar os mais adequados para a investigação científica. Embora esses critérios possam sofrer variações, em geral espera-se que haja entre o modelo e a psicopatologia uma similaridade quanto à etiologia, bases bioquímicas, sintomatologia e tratamento (Willner, 1985, 1991).
Na prática, nem sempre é simples a avaliação de todos esses aspectos. Por exemplo, quanto a sua etiologia há indícios de que a depressão humana tenha tanto causas genéticas como ambientais. Da mesma maneira, os estudos sobre as bases bioquímicas da depressão fornecem dados conflitantes sobre a importância de disfunções nos sistemas de neurotransmissão noradrenérgica e serotoninérgica, além de outros. Portanto, o critério de similaridade a esses níveis fica dependente da evolução do conhecimento em diferentes áreas, inclusive a clínica.
A análise da similaridade dos sintomas é igualmente complexa: não apenas a sintomatologia da depressão é muito variada como nenhum dos sintomas descritos, inclusive o humor deprimido, é essencial para a classificação do estado depressivo (Willner, 1991). Havendo vários "tipos" de depressão com sintomatologia distinta, qual deles deveria estar sendo mimetizado pelo modelo? Além disso, se a classificação existente se mostra muitas vezes inadequada para a análise da depressão humana, qual o referencial para comparação com o modelo animal? Uma rápida análise dos sintomas de depressão apontados no DSM-III - sistema de classificação das desordens psiquiátricas desenvolvido pela American Psychiatric Association, em 1980 - revela que muitos desses sintomas são totalmente subjetivos: tristeza, pessimismo, sentimentos de impotência diante de dificuldades corriqueiras, auto-reprovação ou sentimentos exagerados de culpa, pensamentos suicidas. Uma vez que esses sintomas são impossíveis de serem avaliados em animais, restam para análise da similaridade de sintomas apenas as alterações comportamentais que podem ser objetivamente avaliadas, tais como perda da motivação ou insensibilidade aos reforçadores, baixa atividade locomotora, redução da atividade sexual, distúrbio de sono, redução da ingestão alimentar e perda de peso. De qualquer maneira, a similaridade de sintomas não é um aspecto conclusivo do modelo já que dependendo do caso de depressão humana eles podem até ser opostos ao esperado: por exemplo, pode-se observar aumento de fome e do sono na depressão sazonal (Graeff, 1989) ou hiperagitação em alguns casos de depressão endógena (Willner, 1991).
Por fim, a análise sobre a similaridade de tratamento tem sido centrada, com raras exceções, na farmacoterapia: o esperado é que um bom modelo animal de depressão responda seletivamente a drogas antidepressivas, mas não a outras drogas psicoativas, mimetizando os efeitos da farmacoterapia observados na maioria dos pacientes deprimidos. Entretanto, nem mesmo essa análise é muito simples. Como é sabido, uma parcela considerável dos pacientes deprimidos não responde a tratamentos farmacológicos. Além disso, não é raro que a depressão venha associada à ansiedade, sendo que nesses casos as drogas ansiolíticas podem ter algum efeito terapêutico. Conseqüentemente, também não se pode adotar esse critério isoladamente como definidor de um bom modelo animal de depressão.
Em suma, parece ser impossível que um único modelo animal abarque toda a complexidade de uma psicopatologia que é, em si mesma, multifacetada. Não existindo a depressão, como esperar que possa existir o modelo? A tendência atual é considerar que cada modelo pode ter utilidade para a investigação de alguns dos aspectos da depressão, o que já é uma grande contribuição para se conhecer melhor essa psicopatologia. Nesse sentido, alguns modelos podem se mostrar mais adequados para o teste de drogas antidepressivas, outros para as investigações das causas indutoras dos quadros depressivos, etc. De qualquer maneira, um modelo mostra-se tanto mais útil quanto mais aspectos da depressão abranger, ou seja, quanto mais critérios de validade atender (ver Willner, 1991, para uma discussão ampla a esse respeito).

Desamparo Aprendido

O desamparo aprendido (learned helplessness effect) foi proposto como modelo animal de depressão há quase duas décadas (Seligman, 1975) sendo desde então bastante utilizado em diferentes tipos de pesquisa (Overmier & Hellhammer, 1988). Embora o estudo do desamparo tenha se originado de investigações voltadas para a análise de interações entre contingências respondentes e operantes (Maier, 1989), a partir da sua associação com a depressão ele passou a ser amplamente utilizado como um modelo para o teste de drogas e alterações bioquímicas, ficando a análise funcional desse comportamento relegada a segundo plano. Conforme discutiremos mais adiante, esse abandono da análise funcional do desamparo reduziu o potencial de contribuição desses estudos para a compreensão do comportamento em geral, e da possível similaridade do desamparo com a depressão humana.
O estudo do desamparo se destaca pela análise da história passada como um evento crítico na determinação do comportamento presente. Na maioria dos estudos com animais, o desamparo tem sido caracterizado pela dificuldade de aprendizagem operante apresentada por sujeitos submetidos previamente a eventos incontroláveis (não-contingentes). Via de regra, esses eventos correspondem a estímulos aversivos (geralmente choques elétricos) cuja ocorrência independe do comportamento do sujeito. A dificuldade em aprender tem sido avaliada comparando-se o comportamento desses sujeitos frente a contingências operantes (principalmente de fuga ou esquiva) com o comportamento de sujeitos previamente submetidos a choques controláveis ou a nenhum choque: nessa comparação, maiores latências das respostas de fuga/esquiva, ou a não aprendizagem dessas respostas, caracteriza o desamparo.
Num experimento protótipo, três grupos de animais são colocados individualmente em caixas experimentais idênticas onde permanecem pelo tempo de uma sessão, durante a qual dois deles recebem choques provenientes de uma mesma fonte e um terceiro não recebe choques. Da dupla tratada com choques, apenas um animal pode desligá-los emitindo uma resposta previamente selecionada, controlando dessa maneira a duração dos choques para si e para o seu parceiro, para o qual os choques são incontroláveis. Portanto, essa tríade permite que se analise tanto os efeitos dos choques em si como os efeitos da possibilidade (ou não) de controle sobre os mesmos. Vinte e quatro horas após essa sessão, todos os animais são submetidos a uma contingência de fuga ou esquiva. O resultado padrão é uma maior latência de fuga/esquiva apresentada pelos animais submetidos aos choques incontroláveis, sendo que tanto os animais expostos aos choques controláveis como os não submetidos aos choques não diferem entre si. Em função desses resultados, a incontrolabilidade dos choques, e não os choques em si, vem sendo apresentada como a variável crítica para a ocorrência desse efeito comportamental uma vez que não se observa a dificuldade de aprendizagem pelos sujeitos expostos aos choques controláveis (Overmier & Seligman, 1967; Seligman & Maier, 1967).
Diferentes formulações teóricas foram apresentadas para explicar o desamparo, sendo que a maioria delas propõe que a experiência com os choques incontroláveis tem como efeito principal tornar o sujeito menos ativo. Essa inatividade pode ser aprendida através de contingências acidentais supostamente presentes na condição de incontrolabilidade (Bracewell & Black, 1974; Glazer & Weiss, 1976; Levis, 1976), ou pode ser decorrente da depleção de alguns neurotransmissores cerebrais que reduziria a atividade motora do sujeito (Anisman, lrwing & Sklar, 1979; Weiss, Glazer & Pohorecky, 1976; Weiss, Glazer, Pohorecky, Brick & Miller, 1975). Aprendida ou imposta bioquimicamente, a inatividade teria como conseqüência dificultar a inicializacão da resposta de teste, reduzindo o contato do sujeito com a contingência operante. Em suma, essas hipóteses sugerem que a dificuldade de aprendizagem operante observada nesses estudos é meramente um subproduto da baixa atividade locomotora dos animais e não um processo de aprendizagem em si.
Entretanto, a hipótese que ganhou maior projeção na análise desse fenômeno não atribui à inatividade um papel crítico. Segundo alguns autores, os indivíduos submetidos à incontrolabilidade aprendem que os eventos do meio ocorrem independentemente do seu comportamento e essa aprendizagem interfere na aprendizagem oposta de fuga ou esquiva (Maier & Seligman, 1976; Seligman, Maier & Solomon, 1971). Essa hipótese recebeu o mesmo nome do fenômeno que se propõe a explicar (learned helplessness hypothesis) o que gera muitas vezes confusão entre o fenômeno e a sua explicação. Apesar dessa mistura indesejável, esta é a única formulação teórica que analisa o desamparo diretamente como um processo de aprendizagem associativa e não como subproduto de outros processos, análise essa que tem se revelado mais consistente com os dados experimentais que a proposta de inatividade (Maier & Seligman, 1976; Maier, 1989). É também a hipótese do desamparo aprendido que justifica a proposição desse fenômeno comportamental como um modelo de depressão humana (Overmier & Helhammer, 1988; Seligman, 1975).
O desamparo aprendido foi inicialmente sugerido como modelo de depressão reativa ou exógena devido às semelhanças de sintomatologia, etiologia, cura e prevenção (Seligman, 1975). Embora essa proposta tenha sido feita poucos anos após o primeiro relato de desamparo com animais, pode-se dizer que os trabalhos experimentais que a seguiram trouxeram uma grande quantidade de informações que, de uma maneira geral, sustentam a sua credibilidade como um dos melhores modelos de depressão em uso, embora não exista um consenso sobre que tipo de depressão é mimetizada pelos animais desamparados. A favor do desamparo mimetizar a depressão reativa existe, além do fator desencadeante ambiental, o fato de que o comportamento pode ser revertido forçando-se o sujeito a emitir a resposta de fuga o que, segundo alguns autores, poderia ser análogo a intervenções psicossociais tipo psicoterapia (Seligman, Maier & Geer, 1968; Seligman, Rosellini & Kozak, 1975). Entretanto a sua sensibilidade diferencial a tratamento com drogas antidepressivas (Sherman, Sacquitne & Petty, 1982) aponta na direção da depressão endógena uma vez que se relata que a depressão reativa responde pouco ao tratamento farmacológico (Graeff, 1989). Da mesma maneira, outras características do animal desamparado - tais como passividade, baixa atividade locomotora, piora no desempenho mantido por contingências de reforçamento positivo, redução de comportamentos agressivos, perda de apetite e elevação dos níveis de corticosteroides - também são freqüentemente associados à sintomatologia da depressão endógena ou à fase depressiva da PMD. Portanto, a afirmação de que o desamparo mimetiza a depressão exógena, bem aceita nos trabalhos iniciais, é hoje olhada com cautela.
Essa dificuldade de se determinar o tipo de depressão que é mimetizado pelo desamparo torna-se pouco relevante frente à tendência crescente de se considerar que mesmo em humanos nem sempre é possível se fazer uma distinção exata dos diferentes subtipos de depressão. Mais relevante parece ser a análise das similaridades freqüentemente observadas entre os animais desamparados e diferentes tipos de pacientes deprimidos. Entre elas observa-se nos animais desamparados, além das características comportamentais já citadas, a depleção dos neurotransmissores noradrenalina (NA) e serotonina (5-HT) (Anisman, lrwing & Sklar, 1979; Weiss e cols., 1975; Weiss, Glazer & Pohorecky, 1976), coincidente com as principais teorias sobre a bioquímica da depressão (Graeff, 1989). Diferentes trabalhos têm demonstrado que drogas agonistas de NA e 5-HT são efetivas para impedir o desamparo em animais (Graeff, Hunziker & Graeff, 1989; Sherman, Sacquitne & Petty, 1982), enquanto antagonistas desses neurotransmissores simulam o desamparo (Anisman & Zacharko, 1982). Nesse sentido, o efeito obtido com a imipramina, que é um dos antidepressivos mais utilizados clinicamente, pode ser um argumento a favor da analogia entre desamparo e depressão (Petty & Sherman, 1979). Outro exemplo de características dos animais desamparados que coincidem com as de pacientes deprimidos é a imuno-supressão (Laudendlager, Ryan, Drugan, Hyson & Maier, 1983; Mormede, Dantzer, Michaud, Kelley & Moa’, 1988).
Se esse conjunto de resultados sugere para alguns a validação do desamparo aprendido como modelo de depressão, para outros ele é insuficiente. Segundo Willner (1986, 1991), a proposta do desamparo como modelo de depressão baseia-se em três asserções que são controvertidas: 1) os animais submetidos aos eventos aversivos incontroláveis tornam-se desamparados em função da aprendizagem de independência entre seu comportamento e os eventos do meio; 2) pessoas submetidas à incontrolabilidade desenvolvem uma aprendizagem similar, tornando-se desamparadas; 3) o desamparo (ou a crença na independência entre comportamento e eventos do meio) é o sintoma central da depressão em humanos. Para Willner, a primeira asserção só se sustenta na hipótese do desamparo aprendido, sendo contestada pelas demais hipóteses explicativas que apontam a inatividade como a variável crítica; a segunda asserção baseia-se na teoria do desamparo reformulada para humanos (Abranson, Seligman & Teasdale, 1978) onde a variável crítica passa a ser a atribuição que o indivíduo faz das suas falhas, não bastando a simples experiência com a incontrolabilidade, o que torna praticamente impossível seu teste com animais; por fim, a terceira asserção fica comprometida por resultados experimentais que sugerem que nem sempre a atribuição depressiva implica numa maior probabilidade de depressão. Apesar dessa argumentação de Willner ser bastante criteriosa, ela pode ser questionada, ao menos em pane, pelo fato dele recorrer às hipóteses da inatividade, as quais têm sido cada vez mais descartadas como explicações convincentes do desamparo. O que se pode dizer é que no atual estágio de investigação predomina na literatura a idéia de que o desamparo tem sido um modelo comportamental bastante útil no estudo experimental da depressão.
Apesar disso, a análise da maioria dos trabalhos publicados sobre desamparo aprendido revela uma surpreendente falta de rigor tanto conceitual (na classificação do efeito em si) como metodológica (nos procedimentos empregados para a sua produção). O uso do desamparo como um mero modelo, sem uma análise funcional do comportamento estudado, tem gerado um grande número de trabalhos cujos processos comportamentais chamados de "desamparo" dificilmente poderiam ser considerados equivalentes. Por exemplo, apesar do desamparo ser definido como a dificuldade ou falha de aprendizagem instrumental em função da experiência prévia com eventos aversivos incontroláveis, a maior pane dos trabalhos relatados não leva em conta esse aspecto de aprendizagem: a diferença de latência de fuga e/ou esquiva entre os grupos não encobre o fato de que os animais não submetidos aos choques incontroláveis freqüentemente não apresentam padrão de aprendizagem (Alloy & Bersh, 1979; Jackson, Maier & Rapaport, 1978, experimento lA; Maier & Jackson, 1977; Maier & Testa, 1975; Seligman, Rosellini & Kozak, 1975, experimento 2). Ou seja, se o desamparo é por definição uma interferência num processo de aprendizagem operante em função de uma história passada específica, o mínimo a se esperar é que essa aprendizagem seja claramente observada em animais que não tiveram tal história. Sem essa demonstração, os comportamentos observados não podem ser chamados de desamparo.
A falta de rigor conceitual e metodológico tem gerado resultados que levam a equívocos na análise teórica do fenômeno. Como exemplo disso, pode-se citar dois conjuntos de resultados que geraram problemas na validação e interpretação teórica do fenômeno, e posteriormente se revelaram fruto da imprecisão metodológica: 1) a dificuldade de replicação do desamparo com ratos (os trabalhos iniciais foram com cães), que sugeriu por algum tempo a sua baixa generalidade como processo básico entre espécies, e 2) o fato do desamparo não ser observado após 48 horas da experiência com a incontrolabilidade (Overmier & Seligman, 1967; Weiss e cols., 1992), o que dificultava sua análise como um fenômeno decorrente de processos associativos, ou mesmo da sua equivalência à depressão humana uma vez que o diagnóstico de depressão do DSM-III requer que a sintomatologia permaneça pelo menos durante duas semanas (Willner, 1991). Hoje sabe-se que o desamparo ocorre tanto em ratos como nas mais diferentes espécies (Overmier & Hellhammer, 1988), após diferentes intervalos da experiência com a incontrolabilidade (por exemplo, Damiani, Costa, Machado & Hunziker, 1992).
As primeiras replicações com ratos foram obtidas quando se utilizou como contingência de fuga o esquema de reforçamento em FR2 para a resposta de correr na shuttlebox (Maier & Testa, 1975) e em FR3 para a resposta de pressão à barra (Seligman, Rosellini & Kozak, 1975). Ambas as contingências foram propostas em substituição à contingência de FRI na shuttlebox, empregada inicialmente por ser análoga à utilizada com cães, porém sem sucesso com ratos. Embora esses pesquisadores tenham adaptado a contingência de fuga para os ratos considerando as diferenças entre as espécies, é curioso notar que a "solução" apresentada por eles não levou em conta o requisito mínimo de demonstrar que os animais ingênuos aprendem a resposta de fuga: ambas as contingências produzem, nos animais ingênuos, latências constantes ou progressivamente maiores ao longo da sessão de fuga, o que é o oposto do esperado nesse processo de aprendizagem. Nesses trabalhos, o fato dos animais submetidos aos choques incontroláveis terem apresentado latências mais altas que os sujeitos ingênuos foi considerado suficiente para caracterizar o desamparo. Essa imprecisão de medida do processo de aprendizagem operante está igualmente pressente nos trabalhos que investigaram a ocorrência do desamparo após 48 horas desde os choques incontroláveis, tornando pouco elucidativos os resultados a esse respeito (Maier & Testa, 1975; Seligman Rosellini & Kozak, 1975). Apesar disso, essas contingências de fuga e/ou esquiva continuam sendo adotadas pela maioria dos pesquisadores do desamparo (ver, por exemplo, Maier, 1989).
A análise da inadequação desses procedimentos experimentais motivou uma série de investigações estabelecendo contingências mais precisas, tendo sido obtidos resultados sistemáticos de desamparo com ratos em condições onde os animais ingênuos apresentaram um típico padrão de aprendizagem de fuga. Basicamente, foi estabelecida uma contingência de fuga onde a possibilidade de interação entre contingências operantes e respondentes, conflitantes entre si, foram minimizadas. Também foi reduzida a probabilidade inicial da resposta de fuga e aumentada a quantidade de feedback sobre essa resposta (ver análise de Hunziker, 1981). Usando-se o procedimento básico gerado por esses experimentos, foram obtidos resultados algumas vezes destoantes da literatura da área, porém mais consistentes com a análise do processo de aprendizagem em estudo: 1) o desamparo foi observado igualmente após 24 ou 168 horas (ou 7 dias) dos choques incontroláveis (Damiani e cols., 1992); 2) obteve-se igual nível de desamparo em ratos machos e fêmeas (Hunziker & Damiani, 1992), em contraposição a relatos de que fêmeas não desenvolvem o desamparo aprendido, ou o desenvolvem menos intensamente (Navarro e cols., 1984; Steenbergen, Heinsbrock, van Haaren & van de Poll, 1989); 3) o uso de sinalização pós-choques incontroláveis, semelhante à descrita por Volpicelli, Ulm, Altenor e Seligman (1984) como suficiente para impedir o aparecimento do desamparo, não produziu esse efeito (Damiani & Hunziker, 1992); 4) uma única administração de naloxona (Hunziker, 1992) ou de imipramina (Graeff, 1991; Hunziker, Buonomano & Moura, 1986) impediu o aparecimento do desamparo, contrariando outros trabalhos que descreveram a necessidade de tratamento crônico para obter esse resultado (Hemingway & Reigle, 1987; Petty & Sherman, 1979). Pelo fato de que todos esses trabalhos mostram, sem exceção, padrões de aprendizagem de fuga pelos sujeitos ingênuos e latências significantemente mais elevadas emitidas pelos sujeitos submetidos previamente aos choques incontroláveis, pode-se assegurar a análise de um processo de aprendizagem instrumental. Por outro lado, com os procedimentos normalmente adotados é mais provável que se esteja medindo a atividade motora eliciada pelos choques e não um processo associativo (Maier & Testa, 1975). Nesse caso, os dois conjuntos de trabalhos não seriam diretamente comparáveis por estarem investigando processos distintos.
Portanto, parece ser indispensável que o desafio de se estabelecerem modelos animais de psicopatologias seja acompanhado de uma constante e rigorosa análise dos processos comportamentais envolvidos. A falta dessa análise gera o uso do comportamento como um mero instrumento de teste como se ele não fosse uma complexa interação entre o organismo e o ambiente, o que é falso. Nunca é demais lembrar que um instrumento equivocado gera, necessariamente, resultados pouco confiáveis. Assim, mais importante do que a resposta à pergunta do título desse trabalho é a constatação de que ainda há muito a ser investigado sobre a complexidade das variáveis responsáveis pelo desamparo aprendido. A questão teórica subjacente a esses estudos continua sendo de grande relevância para a análise do comportamento, e o delineamento proposto oferece um instrumental adequado para estudos rigorosos sobre as variáveis das quais o comportamento é função. Se esses estudos somarem evidências para a análise das similaridades do desamparo com a depressão humana, tanto melhor para a compreensão dessa psicopatologia. Contudo, sem esse rigor metodológico corre-se o risco de análises superficiais e, conseqüentemente, equivocadas. O que é, no mínimo, um atraso para a ciência.

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POST: HILTON CAIO