sexta-feira, 8 de julho de 2011

PREPARADOS PSICOLOGICAMENTE PARA A RELIGIÃO

RICHARD DAWKINS
Livro: Deus, um delírio

A idéia sobre os subprodutos psicológicos floresce naturalmente no importante e crescente campo da psicologia evolutiva. Os psicólogos evolucionistas sugerem que, assim como o olho é um órgão que  evoluiu  para a visão, e a asa um órgão que evoluiu para voar, o cérebro é uma coleção de órgãos (ou  "módulos")  para  lidar  com  um  conjunto  de  necessidades  especializadas  de processamento  de  dados.  Há um  módulo  para  lidar  com as  relações  familiares, um  módulo  para  lidar  com  trocas  recíprocas,  um  módulo  para  lidar  com  a empatia, e assim por diante. A religião pode ser encarada como um subproduto do "erro"  de  vários  desses  módulos,  por  exemplo  os  módulos  para  a  formação de teorias   sobre   outras   mentes,   para   a   formação   de  coalizões   e  para   a discriminação  a  favor  de  indivíduos  de  dentro  do  grupo,  em  detrimento  de estranhos.  Qualquer  um  desses  poderia  funcionar  como  o  equivalente  humano para a navegação celeste das mariposas, vulneráveis ao "erro" do mesmo modo que sugeri  para a  credulidade  infantil. 





O  psicólogo  Paul  Bloom,  outro defensor da visão da "religião como subproduto", ressalta que as crianças têm uma tendência natural  para  uma teoria dualista da  mente.  A religião, para ele, é um subproduto desse  dualismo  instintivo.  Nós,  seres  humanos,  sugere  ele,  especialmente  as crianças, somos dualistas por natureza.
Um dualista reconhece a distinção fundamental entre matéria e mente. Um monista,  ao  contrário,  acredita  que  a  mente  é  a manifestação  da  matéria — o material  do  cérebro  ou  talvez  de um computador — e não pode existir sem ela. Um dualista acredita  que  a mente é  algum  tipo  de  espírito fluido  que habita o corpo e portanto poderia, teoricamente, deixar o corpo e existir em algum outro lugar.   Os   dualistas   prontamente   interpretam   as  doenças   mentais   como "possessão por demônios", sendo que esses demônios são espíritos cuja residência no  corpo  é  temporária, de  modo  que  eles  podem  ser  "expulsos".  Os  dualistas personificam objetos  físicos  inanimados  na  primeira  oportunidade, enxergando espíritos e demônios até em cachoeiras e nuvens.
O  romance Vice  versa, de  F.  Anstey,  de  1882,  faz  sentido  para um  dualista, mas deve ser estritamente incompreensível para um monista retinto como eu. O sr.  Bultitude  e  seu  filho  descobrem misteriosamente  que  trocaram  de  corpo.  O pai, para diversão do filho, é obrigado a ir à escola no corpo do filho; e o filho, no corpo  do  pai,  quase  arruína  os  negócios  paternos  com  suas  decisões imaturas.
Uma  trama  semelhante  foi  usada  por  P.  G.  Wodehouse em Laughinggas [Gás hilariante],  em  que  o  conde  de  Havershot  e uma  estrela  de  filmes  infantis  são submetidos  ao  anestésico  no  mesmo  momento,  em  cadeiras  de  dentista vizinhas, e acordam um no corpo do outro. Mais uma vez, a trama só faz sentido para  um  dualista. Tem  de  existir  alguma  coisa  que  corresponda  ao lorde Havershot  e  que  não  faça  parte  do  corpo  dele,  porque,  do contrário,  como  ele poderia acordar no corpo de um ator mirim?
Assim como a maioria dos cientistas, não sou dualista, mas sou plenamente capaz  de gostar  de Vice  versa e Laughinggas. Paul Bloom  diria  que  isso  acontece porque, embora eu tenha aprendido a ser um monista intelectual, sou um animal humano, e portanto evoluí como um dualista por instinto. A idéia de que existe um eu escondido atrás de meus olhos e capaz, pelo menos na ficção, de migrar para a cabeça  de  outra  pessoa  está  profundamente  enraizada  em  mim  e  em  todos  os outros  seres  humanos,  sejam quais  forem  nossas  pretensões  intelectuais  ao monismo. Bloom sustenta sua afirmação com evidências experimentais de que as crianças  têm  uma  tendência  ainda  maior  que  os  adultos  a  ser dualistas, especialmente crianças bem pequenas. Isso sugere que a tendência ao dualismo
está  dentro  do  cérebro  e,  segundo  Bloom, produz  uma  predisposição  natural para a adoção de idéias religiosas.
Bloom  também  sugere  que  temos  uma  predisposição  inata para  ser criacionistas. A seleção natural "não faz sentido intuitivamente". As crianças são especialmente  propensas  a  dar  um  propósito  a  tudo,  como  afirma  a  psicóloga Deborah  Keleman  em  seu artigo  "São  as  crianças  'teístas  intuitivas'?". Nuvens servem "para chover". Pedras pontudas servem "para os animais poderem se coçar nelas". A designação de um propósito para tudo é denominada teleologia.
As  crianças  são  teleológicas  por  natureza,  e  muitas  nunca  abandonam  a característica.
O  dualismo  inato  e  a  teologia  inata  nos  predispõem,  sob  as condiçõescertas, à religião, assim como a reação à bússola de luz de minhas mariposas as predispunha ao "suicídio" inadvertido. Nosso dualismo inato nos prepara para acreditar  numa  "alma" que  habita  o  corpo,  em  vez de ser  parte  integrante  do corpo. É fácil imaginar um espírito imaterial assim indo para algum outro lugar depois  da  morte  do  corpo.  Também  é  fácil  imaginar  a  existência  de uma divindade  que  seja  puro  espírito,  não  uma  propriedade  que  emerge  da matéria  complexa,  mas  que  existe  independentemente  da matéria.



Mais óbvio ainda, a teleologia infantil nos  deixa  prontos  para  a  religião.  Se tudo tem um propósito, qual é esse propósito? O de Deus, é claro. Mas qual é o equivalente  da utilidade da  bússola de luz  das mariposas?