"O Livro Negro da Psicanálise: Viver e Pensar Melhor Sem Freud" |
Ricardo Cabral
Resenhar O
livro Negro da Psicanálise não é tarefa fácil, menos ainda nesta versão
recém-lançada no Brasil. Razões? Várias, a começar pelo tema, uma crítica feroz
à psicanálise e ao seu “pai”, Sigmund Freud, na forma de uma coletânea de
artigos organizada por Catherine Meyer. Tampouco ajuda ser publicado neste que
é um dos três países onde a psicanálise se mantém mais viva, atuante e
influente — França e Argentina são os outros dois. Outro senão está na origem
da publicação, a França, em função do conturbado contexto político na área da
saúde mental à época do lançamento do livro, do qual fazia parte (e ainda faz)
o embate entre psicanalistas — especialmente os de orientação lacaniana — e
adeptos das TCC (Terapias Cognitivo-Comportamentais).
Mais um problema
encontra-se na distância entre a data de publicação do original em francês e a
presente versão da Civilização Brasileira, o que gerou nestas praias uma
curiosa inversão na ordem dos fatores: o acesso à leitura das críticas que o
livro faz à psicanálise dando-se anos depois do público brasileiro ter
conhecido… suas réplicas. Sim, pois a imprensa brasileira reverberou, poucos meses
após a sua publicação na França, o amplo debate ocorrido naquele país,
inclusive com artigos de respeitados psicanalistas ditando
o ritmo e a direção da discussão. De estranhar só a ausência, das prateleiras
brasileiras, do próprio pivô do debate, com esse curioso quadro onde muitos
conheceram (e eventualmente subscreveram) as críticas a uma publicação que pouquíssimos
haviam lido. Por último, o fato deste que vos escreve acreditar que a
publicação mereça mais do que os costumeiros três ou quatro parágrafos
(desfavoráveis) dedicados ao livro, como tem ocorrido desde a publicação de sua
versão original em francês.
Sobre o
título da resenha, a boutade pede explicação. É que em relação a psicanalistas
e a terapeutas cognitivo-comportamentais, mantenho-me (quase) equidistante.
Psicólogo, mas não de orientação psicanalítica ou seguidor das TCC, só não digo
estar confortavelmente sentado assistindo ao circo arder por reconhecer o
considerável espaço que há tempos a psicanálise ocupa tanto na cultura quanto
nos círculos acadêmicos brasileiros, assim como também sei do lugar
cada vez mais significativo das TCC no campo da saúde mental no Brasil. Porém,
sem pretender avaliar a (autoatribuída) eficácia das últimas frente à
psicanálise — e, por extensão, às demais modalidades psicoterápicas existentes
—, não posso me abster de comentar sobre o renovado vigor das TCC. É que para
além dos seus próprios méritos, elas também vêm pegando carona no estardalhaço
que as neurociências têm feito, assim como no sucesso da psicofarmacologia nas
últimas décadas e, por que não, nas conveniências econômicas em torno da
promessa de tratamentos psicoterápicos mais breves do que as
termináveis/intermináveis (e certamente custosas) análises… Mas para não
contradizer minha (quase) equidistância, preciso ser justo sobre essa conversa
a respeito de conveniências econômicas. Por isso ponho na roda as chamadas
“psicoterapias breves de base psicanalítica”, que se adéquam, tanto quanto as TCC,
à modalidade denominada “psicoterapia de crise”, estando, portanto, aptas para
entrar no rol dos tratamentos oferecidos pelas operadoras de seguros de saúde
aos seus segurados. Vestígios de ironia à parte, não creio que qualquer
profissional de saúde mental no Brasil, associado à orientação que for, consiga
permanecer de todo alheio a esta discussão, já que na pior das hipóteses
sofrerá suas consequências sem sequer desconfiar de onde vieram. (Sendo assim,
só restou um sonoro não à pergunta do título.)
Até aqui já
vão muitos dados em torno do livro e dados de menos sobre o próprio. Ao
trabalho, pois, tratando de seguir contextualizando o tema e torcendo para que
a pretendida luz lançada sobre a obra não vire um daqueles globos de boate com
luzes atordoantes girando em todas as direções. Sendo assim, ponto a favor da
edição brasileira, que conta com um esclarecedor prefácio escrito pela
psicanalista Simone Perelson, uma das tradutoras do livro (a outra é Maria
Beatriz de Medina) e também a responsável pela seleção de 23 dos 40 autores que
constam na versão original. Hum, uma psicanalista traduzindo um livro que
critica a psicanálise e que foi acusado por seus colegas de ser, entre outros
tantos comentários, um “furor de injúrias e acusações grotescas”, e “uma sirene
estridente ganindo a mesma nota ao longo de 800 páginas”? Tranquilizem-se, não
há com o que se preocupar. Além da boa tradução, o prefácio de Simone Perelson
é um guia claro e oportuno a respeito do quadro em que o livro se insere.
Graças a ele tomamos pé de vários antecedentes reveladores em torno da obra,
inclusive sobre o caráter simbólico do título escolhido — cujo negrume alude a O
Livro Negro (1995), uma coletânea de testemunhos de judeus sobreviventes
do Holocausto, donde “a expressão ‘livro negro’ viu-se enodada a um
significante bem preciso: o crime de massa” (p. 14). No referido prefácio
também ficamos sabendo algo sobre o debate pós-lançamento e as reações de
vários psicanalistas à obra — com a “contra-virulência” de muitas réplicas mostrando-se
deveras virulenta, por sinal —, assim como sobre o reconhecimento, por parte de
outros tantos psicanalistas, da pertinência de críticas do livro “às posições
dogmáticas e conservadoras que os praticantes da psicanálise tenderam muitas
vezes a adotar” e à perda, ao longo dos últimos anos, do seu “poder de
subversão social”.
Mas ainda
falta o livro propriamente dito, então saiamos de uma vez do prefácio e falemos
sobre a organizadora da versão original, Catherine Meyer. Em sua introdução ela
avisa: “Assumo sozinha a responsabilidade e a organização da obra”.
Pode-se dizer que cumpre a contento essa intenção protocolar, mesmo
tratando-se de uma meia-verdade. É que o valor do trabalho é por ela mesma
atribuído a quatro co-autores: o filósofo e historiador Mikkel Borch-Jacobsen,
o psiquiatra Jean Cottreaux, o psicólogo clínico Didier Pleux e Jacques Van
Rillaer, “um antigo psicanalista ‘desconvertido’, grande estudioso da obra de
Freud, professor universitário e terapeuta. Cada qual em seu próprio domínio é
de longa data um opositor ao poder psicanalítico”. Responsáveis por um terço
dos 35 artigos que compõem a versão brasileira, eles são a comissão de frente
de uma obra apresentada como “não sectária, internacional, pluridisciplinar,
cuidadosa com os leitores e aberta à crítica”. A mesma introdução sugere
trata-se de um trabalho de pretensões científicas. Entretanto, ao longo da
leitura percebemos que se trata de uma cientificidade por demais afeita às
ciências naturais, aquelas onde a precisão e a objetividade seriam normas
que constituiriam o único modo legítimo de produção da verdade. Esta é, penso,
uma questão epistemológica importante, objeto de debates há tempos. Ela é abordada
pelo livro, mas este desconhece (ou parece ter escolhido desconsiderar) o fato
de que as críticas sobre a “proto”, “pré”, “pseudo” ou simplesmente ausência de
cientificidade da psicanálise não dizem respeito apenas a ela, mas à psicologia
como um todo, o que incluiria as demais modalidades de tratamento psicoterápico
existentes, das quais nem mesmo as TCC escapariam.
Mas discutir
agora a questão da cientificidade da psicanálise e das TCC seria pular etapas,
então convém passarmos à estrutura do livro. Ele se divide em cinco partes: “O
lado oculto da história freudiana”, “Por que a psicanálise teve tamanho
sucesso?”, “A psicanálise e seus impasses”, “As vítimas da psicanálise” e
“Existe vida depois de Freud”. Na primeira (p. 29-92) vemos o empenho dos artigos
escolhidos em mostrar uma psicanálise erigida sobre mitos, lendas, falsas curas
e mentiras diversas, escritas e disseminadas primeiro por Freud e depois pelos
seus seguidores. É ali, por exemplo, que o filósofo Mikkel Borch-Jacobsen
apresenta a sua revisão do famoso caso clínico da senhorita Anna O., descrito
em Estudos sobre a Histeria (1895), obra conjunta de Freud e Joseph
Breuer. Borch-Jacobsen procura mostrar como a história em torno de Anna O.
seria uma grande farsa iniciada pelo pai da psicanálise e sustentada
posteriormente por acréscimos e revisões à história feitos não só por ele
próprio, mas também por discípulos como Ernest Jones e Max Eitington. Bem
fundamentado, uma vez que se baseia, entre inúmeras fontes, nos estudos do
respeitado (inclusive pelos psicanalistas) historiador Henri Ellenberger, o
autor nos apresenta um Freud que distorce dados, faz fofoca, ridiculariza e
mente, tudo em nome da “construção” (p. 44) da psicanálise. E em artigo
posterior, o mesmo Borch-Jacobsen desfere seu pretenso coup de grâce ao
fazer um balanço desolador dos principais casos clínicos descritos por Freud,
afirmando terem “na realidade sido um fracasso total” (p. 68) e concluindo que
ele “não estava de modo algum em posição de se vangloriar de sucessos
terapêuticos! Ao fundamentar suas teorias sobre a eficácia terapêutica de seu
método, ele a fundamentava no vazio — e devia forçosamente saber disso, ‘em
algum lugar’” (p. 69). O Freud descrito pelo filósofo é mesquinho e age de
má-fé, ou seja, é tratado como uma completa fraude, e tanto quanto a maioria
dos artigos selecionados para O livro…, este espera que tais impressões
sigam com o leitor até o fim dessa parte (e do restante da obra). Para quem
nunca leu nada a respeito, parece tentador deixar-se seduzir por um tom de
desmascaramento tão apreciado nos dias atuais, ou, no mínimo, passar a nutrir
considerável desagrado pelo criador da psicanálise. Mas sendo um pouco
estraga-prazeres, convém ressaltar ao menos uma curiosidade em relação à
crítica a respeito de uma psicanálise sustentada sobre mitos e lendas. É que o
próprio Freud aludiu à questão em alguns de seus ensaios, como nas Novas
conferências introdutórias à psicanálise — onde afirmou que “A teoria das pulsões é, por assim dizer,
nossa mitologia” — e em A interpretação dos sonhos — quando colocou a
noção de aparelho psíquico no escaninho das “ficções teóricas”. São
apontamentos condizentes com a perspectiva de uma teoria psicanalítica constituída
por dois corpos teóricos diferentes, um empírico e outro especulativo.
Construtos teóricos como “pulsão”, “libido” e “aparelho psíquico” pertenceriam
ao segundo grupo, tendo valor apenas heurístico, totalmente passível de
modificação e/ou substituição, denotando o seu caráter provisório. Justamente
por sua natureza especulativa, seriam apenas “ficções teóricas” e não mentiras,
como querem Borch-Jacobsen, Allen Esterton (p. 49-55) Frank Cioffi (p. 261-83)
e Joëlle Proust (p. 503-12), entre outros autores d’O livro negro da
psicanálise.
Na segunda
parte, “Por que a psicanálise teve tamanho sucesso?” (p. 93-254), destaco o
artigo do historiador da medicina Edward Shorter, que apresenta um panorama da
disciplina desde seu surgimento até os dias atuais. Centrado no contexto
norte-americano (ou estadunidense, como preferir), Shorter disserta sobre a
ascensão e posterior supremacia da psicanálise frente à psiquiatria biológica
da época — que acreditava nos transtornos mentais causados apenas por lesões cerebrais,
hereditariedade etc. —, para então retratar seu declínio, sobretudo (mas não
apenas) nos próprios EUA. Por tratar-se de uma “talking cure”, “uma troca
verbal entre o paciente e seu médico” (p. 98) bem diferente da mera auscultação
preconizada pelos médicos da época, a psicanálise acabou chamando a atenção de
muitos psiquiatras e neurologistas norte-americanos que, junto com seus
próprios pacientes, ajudaram a disseminá-la, já que os últimos não mais
aceitavam de bom grado os tratamentos anteriores. Além disso, com a emigração
para Nova York, Washington e Los Angeles, de eminentes analistas alemães e
austríacos fugidos de Hitler, consolidou-se, logo após a Segunda Guerra
Mundial, o cenário onde a maioria das cadeiras de psiquiatria era ocupada por
psicanalistas. (Shorter conta também como o movimento psicanalítico só se
fortaleceu na Europa décadas depois, especialmente por ocasião dos movimentos
de 1968, onde ele se viu associado à ideia de uma terapia mais humana, que não
tratava os pacientes como objetos.) O historiador situa nos anos 1960 o ocaso
da psicanálise nos EUA, creditando-o a dois fatores: o desenvolvimento da
psicofarmacologia e o surgimento do “DSM” (sigla em inglês para “Manual
Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais”) — a primeira em 1957 e o
segundo em 1952. Em seu artigo, o autor associa o próprio modelo psicanalítico
à família moderna de então, “… que situa a criança no centro da família e
glorifica a unidade familiar” (p. 108), uma família muito diferente da atual,
da qual fazem parte divórcios, filhos não mais vivendo com ambos os pais,
meios-irmãos de casamentos diferentes coabitando, relações homoparentais etc.,
o que alimentaria o desinteresse pelo referido modelo. Da mesma forma,
relaciona o florescimento da prática psicanalítica às deficiências da
psiquiatria do seu tempo, com um forte apelo tanto teórico-metodológico quanto
econômico contribuindo para que psiquiatras e neurologistas saíssem das
instituições asilares e abrissem seus consultórios particulares, não mais tratando
apenas da “loucura”, mas também das neuroses (ou transtornos “nervosos”) do
mundo moderno. E como a própria psiquiatria se modificou com o decorrer do
tempo, o contraponto com a psicanálise também deixou de ser o mesmo. Edward
Shorter fixa nesses pontos os porquês da ascensão e queda da psicanálise nos
EUA. Embora veja tais explicações como um tanto esquemáticas e simplistas,
destaco a ponderação do texto, bem distante do tom de caça às bruxas encontrado
em outros autores do livro. Ponto para ele.
Os artigos de
Sonu Shamdasani, também historiador, e (mais um) de Borch-Jacobsen, defendem
hipóteses diferentes. Shamdasani parte do nascimento da psicanálise para depois
deter-se sobre a organização do movimento psicanalítico e questões referentes
ao seu ensino. Para ele é “essencialmente graças à eficácia de seu aparelho
institucional (mais do que através de suas inovações teóricas e terapêuticas)”
(p. 116) que a psicanálise teria obtido sucesso. Trata-se de mais um artigo a
considerar, embora o autor ponha fichas demais nessa única hipótese. Afinal de
contas, descartar a perspectiva de um saber com produção teórica múltipla,
constante e que mesmo em momentos de crise interna não permaneceu cego às
transformações sociais, à necessidade de reformulação teórica e nem tampouco
aos (particulares) lugares institucionais que adquiriu (e em alguns casos
perdeu) ao longo do tempo em inúmeros países, não parece de todo correto. As
considerações de Shamdasani complementam a argumentação de Borch-Jacobsen
apresentada no artigo seguinte, “Teoria zero” (p. 137-42). Para este autor, “é
precisamente por ser perfeitamente vazia, perfeitamente oca, que ela pôde se
propagar (…) e se adaptar a contextos tão diferentes. (…) A psicanálise não
existe — ela é uma nebulosa sem consistência, um alvo em perpétuo movimento”
(p. 138-9). Segundo Borch-Jacobsen, a “prova” se encontraria na mera comparação
dos escritos de Freud e os de Melanie Klein, Sandor Ferenczi, Heinz Kohut,
Jacques Lacan, Wilfred Bion, Donald W. Winnicott e tantos outros menos votados
(ou considerados dissidentes), cujo único ponto comum seria o da “… afirmação
do inconsciente, associada à pretensão dos psicanalistas de interpretarem suas
mensagens” (p. 139). O que este artigo enfatiza é que a psicanálise não
passaria de pseudociência e que sua eficácia residia na adaptabilidade ao
contexto em que ela se insere. Como exemplo cita os EUA, com a psicanálise
“promovendo uma ‘ego psychology’ compatível com a psicologia
desenvolvimentista da época” (p. 141), e a França, onde Lacan “abandonou o
biologismo freudiano em benefício de um conceito de ‘desejo’ entendido como
pura negatividade, feito para agradar aos leitores de Alexandre Kojève e aos
‘existencialistas’ dos anos 1950”
(ibid.). Ao propósito de desmantelar a história da psicanálise Borch-Jacobsen
soma o de destroçar seu arcabouço teórico, que se sustentaria tanto em seu
aparelho institucional quanto em sua capacidade de fazer “o inconsciente dizer
o que cada um de sua clientela quer ouvir” (p. 142). A retórica corrosiva deste
autor talvez deixe satisfeita aquela plateia menos simpática à psicanálise, mas
também leva a uma curiosa situação: é que boa parte d’O livro… bate na
tecla da hipótese do inconsciente servindo de base para uma “teoria
irrefutável”, já que quaisquer críticas dirigidas a ela seriam uma prova de
resistência, um conhecido mecanismo de defesa, neste caso contra aquilo que a
psicanálise revelaria. De maneira análoga, discordar de Borch-Jacobsen só
confirmaria seus argumentos.
Voltemos uma
vez mais à responsável pela organização d’O livro…, aproveitando para comentar
um pouco sobre a terceira parte, “A psicanálise e seus impasses” (p. 255-357).
Nota-se como Catherine Meyer apresentou a contento cada uma das referidas
partes, os capítulos que as compõem e, inclusive, um ou outro artigo em
particular, funcionando qual mestre de cerimônias. Essas apresentações, mesmo
as mais curtas, conseguiram dar considerável uniformidade a um conjunto
heterogêneo e desigual de ensaios e entrevistas, mas não foram suficientes para
eliminar a consistência irregular dos artigos que o compõem. Alguns não passam
de estratos que pouco acrescentam às pretensões da coletânea. É o caso do
trecho de entrevista com a filósofa e historiadora da ciência Isabelle Stengers
(p. 81-4), quatro páginas que parecem estar ali mais pela notoriedade da autora
do que pelo aprofundamento sobre o tema do término de uma análise. Outros, por
sua vez, se aproximam de verdadeiras hagiografias, como se vê no artigo de
Didier Pleux sobre a figura do psicólogo Albert Ellis, criador da Terapia
Racional Emotivo-Comportamental (p. 529-51). Penso que mesmo os entusiastas da
obra reconhecerão esta fragilidade, nem que o façam para não reproduzir as
atitudes dogmáticas e míopes atribuídas pelo livro a boa parte dos que
professam a psicanálise. Outro aspecto sobre a escrita de Meyer diz respeito ao
papel por ela representado, nem sempre o mesmo ao longo da obra. Em alguns
momentos suas notas servem para pôr mais lenha na fogueira em que alguns
autores tratam de queimar a figura de Freud, enquanto em outros procuram
dar-lhes um tom mais sóbrio, como nas ocasiões em que trata de contextualizar a
virulência e a mordacidade que alguns imprimiram em suas críticas — uma
sobriedade que pretende justificá-las. Bom exemplo do seu papel moderador pode
ser visto em “A psicanálise é uma ciência?” (p. 257). Ali percebemos claramente
o seu empenho em baixar o tom de certos momentos, digamos, mais “aguerridos” da
coletânea. Trata-se de um dos seus mais longos textos e funciona como introdução
ao artigo do epistemólogo anglo-saxão Frank Cioffi. Nele a organizadora
antecipa parte da argumentação do autor, mas o faz de maneira bem menos
beligerante. Começa pelos argumentos do filósofo da ciência Karl Popper — que
classificaria a psicanálise de pseudociência pela impossibilidade de ser
refutada, isto é, por não submeter suas hipóteses a testes rigorosos, onde caso
“a observação mostra que o efeito previsto não se produz, a teoria é
simplesmente refutada” —; de Popper passa ao epistemólogo Adolf Grünbaum — para
quem os enunciados da psicanálise seriam refutáveis e resultariam em “uma
teoria científica de boa estirpe cujas previsões, infelizmente, foram
refutadas, como Freud às vezes admitiu” —; e só então apresenta a própria
posição de Frank Cioffi, cuja visão é também de uma psicanálise como
pseudociência, mas considerando-a uma teoria de má-fé. Segundo ele, “as teses
de Freud foram há muito tempo invalidadas, e os historiadores puseram em
evidência a manipulação de dados a que ele recorria, mas os defensores da
psicanálise mantêm-se obstinadamente encerrados em sua prisão de vidro”. Embora
a estratégia de utilizar Popper e Grünbaum a serviço da crítica a Freud seja de
Cioffi, o texto de Meyer suaviza bastante o tom belicoso empregado pelo epistemólogo
anglo-saxão. A organizadora antecipa ao leitor como esse tom aparecerá nas
páginas seguintes, mas justifica-o ao informar-nos que Cioffi é veterano das
“‘guerras freudianas’ (Freud Wars) nos países anglo-saxões de uns vinte anos
para cá”. Assim, por tomar parte de uma espécie de “exército de libertação”
contra os supostos embuste e opressão psicanalíticos, o arsenal utilizado por
Cioffi seria como o de um importante cruzado a caminho da Terra Santa para
libertá-la do jugo dos pagãos. Essa “causa nobre” absolveria qualquer excesso
cometido pelo epistemólogo, que de sua parte não se furta em falar de “mentiras
de Freud” (p. 263-71) e chamar os defensores do pai da psicanálise de
“dissimulados e insolentes”, além de qualificar a disciplina como pseudo-hermenêutica.
Em “As
vítimas da psicanálise” (359-498), penúltima parte do livro, o tom beligerante
torna-se quase insuportável. Nele diversos artigos apresentam os “malefícios”
do tratamento psicanalítico. Históricos, pois teriam começado pelo próprio Freud
quando de sua análise de Horace Frink — um dos fundadores da Sociedade
Psicanalítica de Nova York, “manipulado em nome da causa”, segundo Lavinia
Edmunds (p. 363) — e de Anna Freud — sua filha e herdeira intelectual. Seriam
também teórico-técnicos, especialmente em relação ao tratamento do autismo e
das toxicomanias, onde a psicanálise não apenas teria se mostrado ineficaz, mas
também deixado um rastro de sofrimento e até de morte. Além disso, o próprio
sistema educativo teria sofrido com a influência nefasta da psicanálise,
resultando em pais inseguros e culpados, assim como em crianças tiranas, com a
psicanalista Françoise Dolto tendo papel importante (leia-se “culpa”) nesse
estado de coisas. Outro psicanalista de renome, Bruno Bettelheim, “o impostor”,
nas palavras do jornalista e biógrafo Richard Pollack, também seria responsável
pelo sofrimento de inúmeros pais de crianças autistas, justamente em função de
suas teses a respeito deste transtorno. De fato, muito do trabalho desse
psicanalista se viu desacreditado em função do falseamento de dados sobre
tratamentos supostamente realizados por ele. Inclusive uma simples pesquisa à Biblioteca
Virtual em Saúde aponta apenas 18 referências ao seu nome (sete delas do
ano 2000 até o presente), um sutil indicador do (des)interesse evocado por ele
na comunidade acadêmica. Embora muitos dos dados dessa parte d’O livro… sejam
verdadeiros, chama a atenção como é mais uma versão de sua política de “terra
arrasada” frente à psicanálise. Levada ao pé da letra, indicaria como esta
nunca trouxe mais que sofrimento psíquico e prejuízo econômico — para a França,
em particular, e para o resto do mundo em menor escala. Sobressai o tom
apocalíptico e maniqueísta, uma posição desfavorável para quem se anuncia como
obra “não sectária” e “cuidadosa com os leitores”.
Há uma
crítica a O livro… da qual nem mesmo os anti-psicanalistas poderão
discordar. Diz respeito ao espaço privilegiado dado pela coletânea às TCC,
especialmente na quinta e última parte do livro, Existe vida depois de Freud
(p. 499-631), onde elas são apresentadas como a principal alternativa ao
“império freudiano”. É difícil, para não dizer impossível acreditar que se
trate de um privilégio fortuito. Em sua recente resenha sobre a obra, o
psicanalista Joel Birman subscreve uma crítica comum aos psicanalistas
franceses frente à versão original, a de que ela se insere num projeto político
que começa pela demolição do campo psicanalítico para posteriormente apresentar
novas alternativas clínicas, com destaque para as TCC associadas à
psicofarmacologia, o que resultaria numa prática onde “a performance do
indivíduo seria o alvo estabelecido pelos novos paradigmas, com a anulação
definitiva do sujeito e a promoção do controle social dos indivíduos”. (Vale a
pena conferir a resenha de Joel Birman para o Estadão.) A fala
de Birman é sem dúvida sedutora, com um quê de luta de Davi contra Golias, de
defesa da liberdade contra o que pareceria a domesticação ou o “encarceramento
biopolítico do desejo” promovido pela “camarilha” das TCC, dos psicofármacos e
das neurociências ou algo parecido a isso. Entretanto, uma simples passada de
olhos em textos de duas ou três décadas atrás a respeito da “crise” da
psicanálise mostra como alguns tópicos apontados n’O livro… há muito vêm
sendo problematizados por estudiosos da (e na) própria psicanálise, inclusive
no Brasil. Dita leitura dificulta — ao menos a mim — o engajamento entusiasmado
(que se configuraria acrítico) na resistência proposta por Birman contra essa
agenda política que moveria O livro… e, consequentemente, que nos
obrigaria a tratá-lo como um simples panfleto sem consistência nem valor, de
preferência tendo o lixo como destino ou, se tanto, servindo como calço de
porta.
Ainda na
questão do referido privilégio às TCC, continua evidente o fato dele
desconsiderar a enorme quantidade de correntes psicoterápicas distintas (e
distantes) daquelas. Some-se a isso o fato de vários artigos d’O livro… reiterarem
como Freud pretendeu para a psicanálise um lugar entre as ciências naturais,
empreendimento que teria fracassado — um entendimento compartilhado por boa
parte dos psicanalistas, diga-se de passagem —, o que evidenciaria sua falta de
cientificidade. Haveria um claro contraste frente ao estatuto de “psicologia
científica” que as TCC reivindicam para si, sobretudo pela comparação com uma
psicanálise que não passaria de pseudociência — “qualidade” essa que atingiria,
por extensão, as psicoterapias que não reivindicassem explicitamente essa
cientificidade, como dito anteriormente. Mas atribuir-se o estatuto de
“científico” não basta, menos ainda o de uma cientificidade à moda das ciências
da natureza. Seria uma clínica que se pretende objetiva, apoiada em
comportamentos observáveis e flertando com o reducionismo neurofisiológico —
isto é, com a redução do estudo científico da mente e da consciência a seus
correlatos no sistema nervoso —, coincidindo com a clínica “sem sujeito” de que
fala Birman em sua citada resenha. Isso porque com os (velhos e novos) empréstimos
tomados de outras ciências (estatística, neurobiologia, computação etc.), as
TCC pretendem fazer valer primeiro seus conceitos, para então tratar de
validar suas práticas. Só que um conceito ou método tomado de outro campo não
garante, por simples empréstimo, a positividade e evidência dessas
psicoterapias (ou de quaisquer outras). Por outro lado, em sua última parte O
livro… nos indica que as TCC e outros naturalismos contemporâneos não mais
acolheriam essa “mera” herança positivista, naturalista e afins. Entretanto, a
cadeia que vai a) do empréstimo de métodos ou conceitos alienígenas, chegando
b) nas teorias especificamente psicológicas e então c) na prática clínica
continua sem elucidação, da mesma forma como o próprio positivismo não
elucidava o fundamento do conhecimento segundo suas perspectivas
psicologistas. Ressalto que ao levantar a questão sobre uma circularidade que
impede o uso irrestrito da palavra “científico” por parte das TCC, de forma
alguma pretendo dar cabo do assunto, posto que ele não caberia no escopo de uma
resenha. Porém, com as questões epistemológicas esboçadas aqui me parece
razoável dizer que o propalado estatuto científico das TCC não se mostra tão
homogêneo e livre de questionamentos quanto se pretende. O que observo é que a
argumentação d’O livro… a respeito da dita cientificidade (e maior
legitimidade) das TCC frente a uma psicanálise pseudocientífica mostrou-se algo
frouxa, o que exigiria razoável reformulação caso não queira dar munição aos
simpáticos à última.
Mas afinal de
contas, diante de todos esses apontamentos e de tão parcos elogios valeria
mesmo a pena lerO livro negro da Psicanálise? Não tenho dúvida que sim, mas
afirmo que devemos fazê-lo com o devido distanciamento crítico. Mesmo com
atraso, a obra em questão traz de volta algumas críticas à psicanálise sobre as
quais continua valendo a pena ponderar. O contexto é em parte distinto ao
daquelas feitas pelo citado historiador Henri Ellenberger, assim como por
pensadores do porte de Georges Canguilhem, Michel Foucault, Gilles
Deleuze e Felix Guattari, Martin Heidegger, Ludwig Binswanger, Paul
Ricoeur e Ludwig Wittgenstein, só para citar alguns dos mais destacados. Isso
porque muitos atores da trama mudaram de lugar, assim como também o próprio
espaço institucional, político e cultural que a psicanálise ocupa na
atualidade, especialmente na França e na Argentina (e, em menor grau, no
Brasil). Porém, a dinâmica dos jogos de poder e dos interesses econômicos segue
muito parecida, embora com a presença de novos personagens — caso das
neurociências —, modulada com o “auxílio luxuoso” da psicofarmacologia. Certo é
que além da menção às neurociências e à psicofarmacologia como parte da
proposta de uma “vida depois de Freud”, O livro… não apresenta nada
de tão novo em relação aos argumentos dos pensadores citados. Após sua leitura,
até aqueles psicanalistas mais dogmáticos e sectários, avessos a qualquer
crítica, se sentirão no direito de imputar a alguns autores do livro
(especialmente aos associados às TCC) acusações e argumentosad hominem da
mesma cepa daqueles dirigidos a Freud e à psicanálise. Nesse jogo de
incriminações dos dois lados é importante ressaltar como algumas réplicas a O
livro… foram desmascaradas pelos principais autores deste, em particular
aquelas da coletânea organizada pelo eterno “genro-herdeiro” de Lacan,
Jacques-Alain Miller, intitulada Anti-livro negro da psicanálise. Como se
pode ver, aqui não há lugar para amadores.
Como disse
antes, se por um lado as críticas a O livro… não esvaziam o valor de
muitos de seus argumentos, por outro as críticas d’O livro… tampouco devem
ser admitidas candidamente e postas na conta de uma psicanálise vista por ele
como institucionalizada, fossilizada e que vive lançando mão de um enorme
arsenal retórico por mera necessidade de sobrevivência. No Brasil há uma
considerável e fecunda produção acadêmica que, para começar, avalia as
relações entre psicanálise e neurociência por vias distintas às
mencionadas na coletânea; discute criticamente a pertinência da
metapsicologia freudiana para a própria disciplina em questão; analisa, a
partir das filosofias da linguagem de Donald Davidson e de Richard Rorty, a
perspectiva de uma psicanálise pragmática, que por sua vez reformularia a
referida metapsicologia freudiana; pesquisa, de forma transdisciplinar, o
âmbito do psicopatológico (psicopatologia fundamental); avalia as
possibilidades e dificuldades de vigência do discurso psicanalítico no campo da
Saúde Mental (especialmente nos Centros de Atenção Psicossocial); estuda as
relações entre antropologia e psicanálise e entre a psicanálise e a
filosofia, entre outros campos. São exemplos de uma disciplina não cristalizada
ou dogmática, cujas considerações teóricas vão além da mera replicação do que
foi dito por Freud no fim do século dezenove e no começo do século vinte. Ou
seja, tal como quer O livro…, já existe vida depois de Freud, mas nem
por isso ela precisa descartar a psicanálise como um saber fracassado,
ultrapassado e carente de sentido — embora tampouco deva ser mitificado, convém
frisar.
Mesmo com
todas essas ressalvas, espera-se que a tradução brasileira sirva para gerar um
debate análogo ao que ocorreu na França. Ainda que a psicanálise não repercuta
por aqui com tanta veemência quanto nas sociedades francesa e argentina,
sabemos (e vimos um pouco neste mesmo texto) sobre o seu considerável espaço no
meio acadêmico, espaço esse até bastante explícito, mas que nem sempre é claro
ou bem definido por parte dos profissionais que nele se encontram. Sendo assim,
é importante prestarmos atenção às críticas sobre o valor e a atualidade da
psicanálise. Ao mesmo tempo, convém atentar para o (mais recente) retorno a um
biologismo mal disfarçado no âmbito da saúde mental, com sua ideia de
“sujeito cerebral” e sua “linguagem da serotonina”, além do considerável poder
de fogo (em termos econômicos) dedicado pelos laboratórios farmacêuticos não
apenas à divulgação dos seus produtos, mas para “esclarecimentos” sobre as
próprias “desordens mentais-cerebrais”, o jargão da vez. É necessário que
sejamos críticos frente a essa verdadeira “reconfiguração neuroquímica da noção
de ‘pessoa’” que está em curso, sobretudo em função de suas profundas
implicações éticas e sociais. Que essa crítica seja feita numa medida análoga à
dos autores d’O livro negro da psicanálise, mas com o cuidado de desbastar seus
excessos e de não cair na armadilha das críticas ad hominem, da retórica
inconsistente e de eventuais agendas políticas.
::: O
livro negro da psicanálise: Viver e pensar melhor sem Freud ::: Catherine
Meyer (org.) :::
::: Civilização Brasileira, 2011, 644 páginas :::
::: Civilização Brasileira, 2011, 644 páginas :::
Ricardo Cabral
Psicólogo
clínico (psicoterapeuta de orientação existencial) e mestre em educação
tecnológica (CEFET/RJ).