sábado, 17 de setembro de 2011

O Livro Negro da Psicanálise (RESENHA)

"O Livro Negro da Psicanálise: Viver e Pensar Melhor Sem Freud"
Ricardo Cabral
Resenhar O livro Negro da Psicanálise não é tarefa fácil, menos ainda nesta versão recém-lançada no Brasil. Razões? Várias, a começar pelo tema, uma crítica feroz à psicanálise e ao seu “pai”, Sigmund Freud, na forma de uma coletânea de artigos organizada por Catherine Meyer. Tampouco ajuda ser publicado neste que é um dos três países onde a psicanálise se mantém mais viva, atuante e influente — França e Argentina são os outros dois. Outro senão está na origem da publicação, a França, em função do conturbado contexto político na área da saúde mental à época do lançamento do livro, do qual fazia parte (e ainda faz) o embate entre psicanalistas — especialmente os de orientação lacaniana — e adeptos das TCC (Terapias Cognitivo-Comportamentais).


Mais um problema encontra-se na distância entre a data de publicação do original em francês e a presente versão da Civilização Brasileira, o que gerou nestas praias uma curiosa inversão na ordem dos fatores: o acesso à leitura das críticas que o livro faz à psicanálise dando-se anos depois do público brasileiro ter conhecido… suas réplicas. Sim, pois a imprensa brasileira reverberou, poucos meses após a sua publicação na França, o amplo debate ocorrido naquele país, inclusive com artigos de respeitados psicanalistas ditando o ritmo e a direção da discussão. De estranhar só a ausência, das prateleiras brasileiras, do próprio pivô do debate, com esse curioso quadro onde muitos conheceram (e eventualmente subscreveram) as críticas a uma publicação que pouquíssimos haviam lido. Por último, o fato deste que vos escreve acreditar que a publicação mereça mais do que os costumeiros três ou quatro parágrafos (desfavoráveis) dedicados ao livro, como tem ocorrido desde a publicação de sua versão original em francês.
Sobre o título da resenha, a boutade pede explicação. É que em relação a psicanalistas e a terapeutas cognitivo-comportamentais, mantenho-me (quase) equidistante. Psicólogo, mas não de orientação psicanalítica ou seguidor das TCC, só não digo estar confortavelmente sentado assistindo ao circo arder por reconhecer o considerável espaço que há tempos a psicanálise ocupa  tanto na cultura quanto nos círculos acadêmicos brasileiros, assim como também sei do lugar cada vez mais significativo das TCC no campo da saúde mental no Brasil. Porém, sem pretender avaliar a (autoatribuída) eficácia das últimas frente à psicanálise — e, por extensão, às demais modalidades psicoterápicas existentes —, não posso me abster de comentar sobre o renovado vigor das TCC. É que para além dos seus próprios méritos, elas também vêm pegando carona no estardalhaço que as neurociências têm feito, assim como no sucesso da psicofarmacologia nas últimas décadas e, por que não, nas conveniências econômicas em torno da promessa de tratamentos psicoterápicos mais breves do que as termináveis/intermináveis (e certamente custosas) análises… Mas para não contradizer minha (quase) equidistância, preciso ser justo sobre essa conversa a respeito de conveniências econômicas. Por isso ponho na roda as chamadas “psicoterapias breves de base psicanalítica”, que se adéquam, tanto quanto as TCC, à modalidade denominada “psicoterapia de crise”, estando, portanto, aptas para entrar no rol dos tratamentos oferecidos pelas operadoras de seguros de saúde aos seus segurados. Vestígios de ironia à parte, não creio que qualquer profissional de saúde mental no Brasil, associado à orientação que for, consiga permanecer de todo alheio a esta discussão, já que na pior das hipóteses sofrerá suas consequências sem sequer desconfiar de onde vieram. (Sendo assim, só restou um sonoro não à pergunta do título.)
Até aqui já vão muitos dados em torno do livro e dados de menos sobre o próprio. Ao trabalho, pois, tratando de seguir contextualizando o tema e torcendo para que a pretendida luz lançada sobre a obra não vire um daqueles globos de boate com luzes atordoantes girando em todas as direções. Sendo assim, ponto a favor da edição brasileira, que conta com um esclarecedor prefácio escrito pela psicanalista Simone Perelson, uma das tradutoras do livro (a outra é Maria Beatriz de Medina) e também a responsável pela seleção de 23 dos 40 autores que constam na versão original. Hum, uma psicanalista traduzindo um livro que critica a psicanálise e que foi acusado por seus colegas de ser, entre outros tantos comentários, um “furor de injúrias e acusações grotescas”, e “uma sirene estridente ganindo a mesma nota ao longo de 800 páginas”? Tranquilizem-se, não há com o que se preocupar. Além da boa tradução, o prefácio de Simone Perelson é um guia claro e oportuno a respeito do quadro em que o livro se insere. Graças a ele tomamos pé de vários antecedentes reveladores em torno da obra, inclusive sobre o caráter simbólico do título escolhido — cujo negrume alude a O Livro Negro (1995), uma coletânea de testemunhos de judeus sobreviventes do Holocausto, donde “a expressão ‘livro negro’ viu-se enodada a um significante bem preciso: o crime de massa” (p. 14).  No referido prefácio também ficamos sabendo algo sobre o debate pós-lançamento e as reações de vários psicanalistas à obra — com a “contra-virulência” de muitas réplicas mostrando-se deveras virulenta, por sinal —, assim como sobre o reconhecimento, por parte de outros tantos psicanalistas, da pertinência de críticas do livro “às posições dogmáticas e conservadoras que os praticantes da psicanálise tenderam muitas vezes a adotar” e à perda, ao longo dos últimos anos, do seu “poder de subversão social”.
Mas ainda falta o livro propriamente dito, então saiamos de uma vez do prefácio e falemos sobre a organizadora da versão original, Catherine Meyer. Em sua introdução ela avisa: “Assumo sozinha a responsabilidade e a organização da obra”.  Pode-se dizer que cumpre a contento essa intenção protocolar, mesmo tratando-se de uma meia-verdade. É que o valor do trabalho é por ela mesma atribuído a quatro co-autores: o filósofo e historiador Mikkel Borch-Jacobsen, o psiquiatra Jean Cottreaux, o psicólogo clínico Didier Pleux e Jacques Van Rillaer, “um antigo psicanalista ‘desconvertido’, grande estudioso da obra de Freud, professor universitário e terapeuta. Cada qual em seu próprio domínio é de longa data um opositor ao poder psicanalítico”. Responsáveis por um terço dos 35 artigos que compõem a versão brasileira, eles são a comissão de frente de uma obra apresentada como “não sectária, internacional, pluridisciplinar, cuidadosa com os leitores e aberta à crítica”. A mesma introdução sugere trata-se de um trabalho de pretensões científicas. Entretanto, ao longo da leitura percebemos que se trata de uma cientificidade por demais afeita às ciências naturais, aquelas onde a precisão e a objetividade seriam normas que constituiriam o único modo legítimo de produção da verdade. Esta é, penso, uma questão epistemológica importante, objeto de debates há tempos. Ela é abordada pelo livro, mas este desconhece (ou parece ter escolhido desconsiderar) o fato de que as críticas sobre a “proto”, “pré”, “pseudo” ou simplesmente ausência de cientificidade da psicanálise não dizem respeito apenas a ela, mas à psicologia como um todo, o que incluiria as demais modalidades de tratamento psicoterápico existentes, das quais nem mesmo as TCC escapariam.
Mas discutir agora a questão da cientificidade da psicanálise e das TCC seria pular etapas, então convém passarmos à estrutura do livro. Ele se divide em cinco partes: “O lado oculto da história freudiana”, “Por que a psicanálise teve tamanho sucesso?”, “A psicanálise e seus impasses”, “As vítimas da psicanálise” e “Existe vida depois de Freud”. Na primeira (p. 29-92) vemos o empenho dos artigos escolhidos em mostrar uma psicanálise erigida sobre mitos, lendas, falsas curas e mentiras diversas, escritas e disseminadas primeiro por Freud e depois pelos seus seguidores. É ali, por exemplo, que o filósofo Mikkel Borch-Jacobsen apresenta a sua revisão do famoso caso clínico da senhorita Anna O., descrito em Estudos sobre a Histeria (1895), obra conjunta de Freud e Joseph Breuer. Borch-Jacobsen procura mostrar como a história em torno de Anna O. seria uma grande farsa iniciada pelo pai da psicanálise e sustentada posteriormente por acréscimos e revisões à história feitos não só por ele próprio, mas também por discípulos como Ernest Jones e Max Eitington. Bem fundamentado, uma vez que se baseia, entre inúmeras fontes, nos estudos do respeitado (inclusive pelos psicanalistas) historiador Henri Ellenberger, o autor nos apresenta um Freud que distorce dados, faz fofoca, ridiculariza e mente, tudo em nome da “construção” (p. 44) da psicanálise. E em artigo posterior, o mesmo Borch-Jacobsen desfere seu pretenso coup de grâce ao fazer um balanço desolador dos principais casos clínicos descritos por Freud, afirmando terem “na realidade sido um fracasso total” (p. 68) e concluindo que ele “não estava de modo algum em posição de se vangloriar de sucessos terapêuticos! Ao fundamentar suas teorias sobre a eficácia terapêutica de seu método, ele a fundamentava no vazio — e devia forçosamente saber disso, ‘em algum lugar’” (p. 69). O Freud descrito pelo filósofo é mesquinho e age de má-fé, ou seja, é tratado como uma completa fraude, e tanto quanto a maioria dos artigos selecionados para O livro…, este espera que tais impressões sigam com o leitor até o fim dessa parte (e do restante da obra). Para quem nunca leu nada a respeito, parece tentador deixar-se seduzir por um tom de desmascaramento tão apreciado nos dias atuais, ou, no mínimo, passar a nutrir considerável desagrado pelo criador da psicanálise. Mas sendo um pouco estraga-prazeres, convém ressaltar ao menos uma curiosidade em relação à crítica a respeito de uma psicanálise sustentada sobre mitos e lendas. É que o próprio Freud aludiu à questão em alguns de seus ensaios, como nas Novas conferências introdutórias à psicanálise — onde afirmou que “A teoria das pulsões é, por assim dizer, nossa mitologia” — e em A interpretação dos sonhos — quando colocou a noção de aparelho psíquico no escaninho das “ficções teóricas”. São apontamentos condizentes com a perspectiva de uma teoria psicanalítica constituída por dois corpos teóricos diferentes, um empírico e outro especulativo. Construtos teóricos como “pulsão”, “libido” e “aparelho psíquico” pertenceriam ao segundo grupo, tendo valor apenas heurístico, totalmente passível de modificação e/ou substituição, denotando o seu caráter provisório. Justamente por sua natureza especulativa, seriam apenas “ficções teóricas” e não mentiras, como querem Borch-Jacobsen, Allen Esterton (p. 49-55) Frank Cioffi (p. 261-83) e Joëlle Proust (p. 503-12), entre outros autores d’O livro negro da psicanálise.
Na segunda parte, “Por que a psicanálise teve tamanho sucesso?” (p. 93-254), destaco o artigo do historiador da medicina Edward Shorter, que apresenta um panorama da disciplina desde seu surgimento até os dias atuais. Centrado no contexto norte-americano (ou estadunidense, como preferir), Shorter disserta sobre a ascensão e posterior supremacia da psicanálise frente à psiquiatria biológica da época — que acreditava nos transtornos mentais causados apenas por lesões cerebrais, hereditariedade etc. —, para então retratar seu declínio, sobretudo (mas não apenas) nos próprios EUA. Por tratar-se de uma “talking cure”, “uma troca verbal entre o paciente e seu médico” (p. 98) bem diferente da mera auscultação preconizada pelos médicos da época, a psicanálise acabou chamando a atenção de muitos psiquiatras e neurologistas norte-americanos que, junto com seus próprios pacientes, ajudaram a disseminá-la, já que os últimos não mais aceitavam de bom grado os tratamentos anteriores. Além disso, com a emigração para Nova York, Washington e Los Angeles, de eminentes analistas alemães e austríacos fugidos de Hitler, consolidou-se, logo após a Segunda Guerra Mundial, o cenário onde a maioria das cadeiras de psiquiatria era ocupada por psicanalistas. (Shorter conta também como o movimento psicanalítico só se fortaleceu na Europa décadas depois, especialmente por ocasião dos movimentos de 1968, onde ele se viu associado à ideia de uma terapia mais humana, que não tratava os pacientes como objetos.) O historiador situa nos anos 1960 o ocaso da psicanálise nos EUA, creditando-o a dois fatores: o desenvolvimento da psicofarmacologia e o surgimento do “DSM” (sigla em inglês para “Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais”) — a primeira em 1957 e o segundo em 1952. Em seu artigo, o autor associa o próprio modelo psicanalítico à família moderna de então, “… que situa a criança no centro da família e glorifica a unidade familiar” (p. 108), uma família muito diferente da atual, da qual fazem parte divórcios, filhos não mais vivendo com ambos os pais, meios-irmãos de casamentos diferentes coabitando, relações homoparentais etc., o que alimentaria o desinteresse pelo referido modelo. Da mesma forma, relaciona o florescimento da prática psicanalítica às deficiências da psiquiatria do seu tempo, com um forte apelo tanto teórico-metodológico quanto econômico contribuindo para que psiquiatras e neurologistas saíssem das instituições asilares e abrissem seus consultórios particulares, não mais tratando apenas da “loucura”, mas também das neuroses (ou transtornos “nervosos”) do mundo moderno. E como a própria psiquiatria se modificou com o decorrer do tempo, o contraponto com a psicanálise também deixou de ser o mesmo. Edward Shorter fixa nesses pontos os porquês da ascensão e queda da psicanálise nos EUA. Embora veja tais explicações como um tanto esquemáticas e simplistas, destaco a ponderação do texto, bem distante do tom de caça às bruxas encontrado em outros autores do livro. Ponto para ele.
Os artigos de Sonu Shamdasani, também historiador, e (mais um) de Borch-Jacobsen, defendem hipóteses diferentes. Shamdasani parte do nascimento da psicanálise para depois deter-se sobre a organização do movimento psicanalítico e questões referentes ao seu ensino. Para ele é “essencialmente graças à eficácia de seu aparelho institucional (mais do que através de suas inovações teóricas e terapêuticas)” (p. 116) que a psicanálise teria obtido sucesso. Trata-se de mais um artigo a considerar, embora o autor ponha fichas demais nessa única hipótese. Afinal de contas, descartar a perspectiva de um saber com produção teórica múltipla, constante e que mesmo em momentos de crise interna não permaneceu cego às transformações sociais, à necessidade de reformulação teórica e nem tampouco aos (particulares) lugares institucionais que adquiriu (e em alguns casos perdeu) ao longo do tempo em inúmeros países, não parece de todo correto. As considerações de Shamdasani complementam a argumentação de Borch-Jacobsen apresentada no artigo seguinte, “Teoria zero” (p. 137-42). Para este autor, “é precisamente por ser perfeitamente vazia, perfeitamente oca, que ela pôde se propagar (…) e se adaptar a contextos tão diferentes. (…) A psicanálise não existe — ela é uma nebulosa sem consistência, um alvo em perpétuo movimento” (p. 138-9). Segundo Borch-Jacobsen, a “prova” se encontraria na mera comparação dos escritos de Freud e os de Melanie Klein, Sandor Ferenczi, Heinz Kohut, Jacques Lacan, Wilfred Bion, Donald W. Winnicott e tantos outros menos votados (ou considerados dissidentes), cujo único ponto comum seria o da “… afirmação do inconsciente, associada à pretensão dos psicanalistas de interpretarem suas mensagens” (p. 139). O que este artigo enfatiza é que a psicanálise não passaria de pseudociência e que sua eficácia residia na adaptabilidade ao contexto em que ela se insere. Como exemplo cita os EUA, com a psicanálise “promovendo uma ‘ego psychology’ compatível com a psicologia desenvolvimentista da época” (p. 141), e a França, onde Lacan “abandonou o biologismo freudiano em benefício de um conceito de ‘desejo’ entendido como pura negatividade, feito para agradar aos leitores de Alexandre Kojève e aos ‘existencialistas’ dos anos 1950” (ibid.). Ao propósito de desmantelar a história da psicanálise Borch-Jacobsen soma o de destroçar seu arcabouço teórico, que se sustentaria tanto em seu aparelho institucional quanto em sua capacidade de fazer “o inconsciente dizer o que cada um de sua clientela quer ouvir” (p. 142). A retórica corrosiva deste autor talvez deixe satisfeita aquela plateia menos simpática à psicanálise, mas também leva a uma curiosa situação: é que boa parte d’O livro… bate na tecla da hipótese do inconsciente servindo de base para uma “teoria irrefutável”, já que quaisquer críticas dirigidas a ela seriam uma prova de resistência, um conhecido mecanismo de defesa, neste caso contra aquilo que a psicanálise revelaria. De maneira análoga, discordar de Borch-Jacobsen só confirmaria seus argumentos.
Voltemos uma vez mais à responsável pela organização d’O livro…, aproveitando para comentar um pouco sobre a terceira parte, “A psicanálise e seus impasses” (p. 255-357). Nota-se como Catherine Meyer apresentou a contento cada uma das referidas partes, os capítulos que as compõem e, inclusive, um ou outro artigo em particular, funcionando qual mestre de cerimônias. Essas apresentações, mesmo as mais curtas, conseguiram dar considerável uniformidade a um conjunto heterogêneo e desigual de ensaios e entrevistas, mas não foram suficientes para eliminar a consistência irregular dos artigos que o compõem. Alguns não passam de estratos que pouco acrescentam às pretensões da coletânea. É o caso do trecho de entrevista com a filósofa e historiadora da ciência Isabelle Stengers (p. 81-4), quatro páginas que parecem estar ali mais pela notoriedade da autora do que pelo aprofundamento sobre o tema do término de uma análise. Outros, por sua vez, se aproximam de verdadeiras hagiografias, como se vê no artigo de Didier Pleux sobre a figura do psicólogo Albert Ellis, criador da Terapia Racional Emotivo-Comportamental (p. 529-51). Penso que mesmo os entusiastas da obra reconhecerão esta fragilidade, nem que o façam para não reproduzir as atitudes dogmáticas e míopes atribuídas pelo livro a boa parte dos que professam a psicanálise. Outro aspecto sobre a escrita de Meyer diz respeito ao papel por ela representado, nem sempre o mesmo ao longo da obra. Em alguns momentos suas notas servem para pôr mais lenha na fogueira em que alguns autores tratam de queimar a figura de Freud, enquanto em outros procuram dar-lhes um tom mais sóbrio, como nas ocasiões em que trata de contextualizar a virulência e a mordacidade que alguns imprimiram em suas críticas — uma sobriedade que pretende justificá-las. Bom exemplo do seu papel moderador pode ser visto em “A psicanálise é uma ciência?” (p. 257). Ali percebemos claramente o seu empenho em baixar o tom de certos momentos, digamos, mais “aguerridos” da coletânea. Trata-se de um dos seus mais longos textos e funciona como introdução ao artigo do epistemólogo anglo-saxão Frank Cioffi. Nele a organizadora antecipa parte da argumentação do autor, mas o faz de maneira bem menos beligerante. Começa pelos argumentos do filósofo da ciência Karl Popper — que classificaria a psicanálise de pseudociência pela impossibilidade de ser refutada, isto é, por não submeter suas hipóteses a testes rigorosos, onde caso “a observação mostra que o efeito previsto não se produz, a teoria é simplesmente refutada” —; de Popper passa ao epistemólogo Adolf Grünbaum — para quem os enunciados da psicanálise seriam refutáveis e resultariam em “uma teoria científica de boa estirpe cujas previsões, infelizmente, foram refutadas, como Freud às vezes admitiu” —; e só então apresenta a própria posição de Frank Cioffi, cuja visão é também de uma psicanálise como pseudociência, mas considerando-a uma teoria de má-fé. Segundo ele, “as teses de Freud foram há muito tempo invalidadas, e os historiadores puseram em evidência a manipulação de dados a que ele recorria, mas os defensores da psicanálise mantêm-se obstinadamente encerrados em sua prisão de vidro”. Embora a estratégia de utilizar Popper e Grünbaum a serviço da crítica a Freud seja de Cioffi, o texto de Meyer suaviza bastante o tom belicoso empregado pelo epistemólogo anglo-saxão. A organizadora antecipa ao leitor como esse tom aparecerá nas páginas seguintes, mas justifica-o ao informar-nos que Cioffi é veterano das “‘guerras freudianas’ (Freud Wars) nos países anglo-saxões de uns vinte anos para cá”. Assim, por tomar parte de uma espécie de “exército de libertação” contra os supostos embuste e opressão psicanalíticos, o arsenal utilizado por Cioffi seria como o de um importante cruzado a caminho da Terra Santa para libertá-la do jugo dos pagãos. Essa “causa nobre” absolveria qualquer excesso cometido pelo epistemólogo, que de sua parte não se furta em falar de “mentiras de Freud” (p. 263-71) e chamar os defensores do pai da psicanálise de “dissimulados e insolentes”, além de qualificar a disciplina como pseudo-hermenêutica.
Em “As vítimas da psicanálise” (359-498), penúltima parte do livro, o tom beligerante torna-se quase insuportável. Nele diversos artigos apresentam os “malefícios” do tratamento psicanalítico. Históricos, pois teriam começado pelo próprio Freud quando de sua análise de Horace Frink — um dos fundadores da Sociedade Psicanalítica de Nova York, “manipulado em nome da causa”, segundo Lavinia Edmunds (p. 363) — e de Anna Freud — sua filha e herdeira intelectual. Seriam também teórico-técnicos, especialmente em relação ao tratamento do autismo e das toxicomanias, onde a psicanálise não apenas teria se mostrado ineficaz, mas também deixado um rastro de sofrimento e até de morte. Além disso, o próprio sistema educativo teria sofrido com a influência nefasta da psicanálise, resultando em pais inseguros e culpados, assim como em crianças tiranas, com a psicanalista Françoise Dolto tendo papel importante (leia-se “culpa”) nesse estado de coisas. Outro psicanalista de renome, Bruno Bettelheim, “o impostor”, nas palavras do jornalista e biógrafo Richard Pollack, também seria responsável pelo sofrimento de inúmeros pais de crianças autistas, justamente em função de suas teses a respeito deste transtorno. De fato, muito do trabalho desse psicanalista se viu desacreditado em função do falseamento de dados sobre tratamentos supostamente realizados por ele. Inclusive uma simples pesquisa à Biblioteca Virtual em Saúde aponta apenas 18 referências ao seu nome (sete delas do ano 2000 até o presente), um sutil indicador do (des)interesse evocado por ele na comunidade acadêmica. Embora muitos dos dados dessa parte d’O livro… sejam verdadeiros, chama a atenção como é mais uma versão de sua política de “terra arrasada” frente à psicanálise. Levada ao pé da letra, indicaria como esta nunca trouxe mais que sofrimento psíquico e prejuízo econômico — para a França, em particular, e para o resto do mundo em menor escala. Sobressai o tom apocalíptico e maniqueísta, uma posição desfavorável para quem se anuncia como obra “não sectária” e “cuidadosa com os leitores”.
Há uma crítica a O livro… da qual nem mesmo os anti-psicanalistas poderão discordar. Diz respeito ao espaço privilegiado dado pela coletânea às TCC, especialmente na quinta e última parte do livro, Existe vida depois de Freud (p. 499-631), onde elas são apresentadas como a principal alternativa ao “império freudiano”. É difícil, para não dizer impossível acreditar que se trate de um privilégio fortuito. Em sua recente resenha sobre a obra, o psicanalista Joel Birman subscreve uma crítica comum aos psicanalistas franceses frente à versão original, a de que ela se insere num projeto político que começa pela demolição do campo psicanalítico para posteriormente apresentar novas alternativas clínicas, com destaque para as TCC associadas à psicofarmacologia, o que resultaria numa prática onde “a performance do indivíduo seria o alvo estabelecido pelos novos paradigmas, com a anulação definitiva do sujeito e a promoção do controle social dos indivíduos”. (Vale a pena conferir a resenha de Joel Birman para o Estadão.) A fala de Birman é sem dúvida sedutora, com um quê de luta de Davi contra Golias, de defesa da liberdade contra o que pareceria a domesticação ou o “encarceramento biopolítico do desejo” promovido pela “camarilha” das TCC, dos psicofármacos e das neurociências ou algo parecido a isso. Entretanto, uma simples passada de olhos em textos de duas ou três décadas atrás a respeito da “crise” da psicanálise mostra como alguns tópicos apontados n’O livro… há muito vêm sendo problematizados por estudiosos da (e na) própria psicanálise, inclusive no Brasil. Dita leitura dificulta — ao menos a mim — o engajamento entusiasmado (que se configuraria acrítico) na resistência proposta por Birman contra essa agenda política que moveria O livro… e, consequentemente, que nos obrigaria a tratá-lo como um simples panfleto sem consistência nem valor, de preferência tendo o lixo como destino ou, se tanto, servindo como calço de porta.
Ainda na questão do referido privilégio às TCC, continua evidente o fato dele desconsiderar a enorme quantidade de correntes psicoterápicas distintas (e distantes) daquelas. Some-se a isso o fato de vários artigos d’O livro… reiterarem como Freud pretendeu para a psicanálise um lugar entre as ciências naturais, empreendimento que teria fracassado — um entendimento compartilhado por boa parte dos psicanalistas, diga-se de passagem —, o que evidenciaria sua falta de cientificidade. Haveria um claro contraste frente ao estatuto de “psicologia científica” que as TCC reivindicam para si, sobretudo pela comparação com uma psicanálise que não passaria de pseudociência — “qualidade” essa que atingiria, por extensão, as psicoterapias que não reivindicassem explicitamente essa cientificidade, como dito anteriormente. Mas atribuir-se o estatuto de “científico” não basta, menos ainda o de uma cientificidade à moda das ciências da natureza. Seria uma clínica que se pretende objetiva, apoiada em comportamentos observáveis e flertando com o reducionismo neurofisiológico — isto é, com a redução do estudo científico da mente e da consciência a seus correlatos no sistema nervoso —, coincidindo com a clínica “sem sujeito” de que fala Birman em sua citada resenha. Isso porque com os (velhos e novos) empréstimos tomados de outras ciências (estatística, neurobiologia, computação etc.), as TCC pretendem fazer valer primeiro seus conceitos, para então tratar de validar suas práticas. Só que um conceito ou método tomado de outro campo não garante, por simples empréstimo, a positividade e evidência dessas psicoterapias (ou de quaisquer outras). Por outro lado, em sua última parte O livro… nos indica que as TCC e outros naturalismos contemporâneos não mais acolheriam essa “mera” herança positivista, naturalista e afins. Entretanto, a cadeia que vai a) do empréstimo de métodos ou conceitos alienígenas, chegando b) nas teorias especificamente psicológicas e então c) na prática clínica continua sem elucidação, da mesma forma como o próprio positivismo não elucidava o fundamento do conhecimento segundo suas perspectivas psicologistas. Ressalto que ao levantar a questão sobre uma circularidade que impede o uso irrestrito da palavra “científico” por parte das TCC, de forma alguma pretendo dar cabo do assunto, posto que ele não caberia no escopo de uma resenha. Porém, com as questões epistemológicas esboçadas aqui me parece razoável dizer que o propalado estatuto científico das TCC não se mostra tão homogêneo e livre de questionamentos quanto se pretende. O que observo é que a argumentação d’O livro… a respeito da dita cientificidade (e maior legitimidade) das TCC frente a uma psicanálise pseudocientífica mostrou-se algo frouxa, o que exigiria razoável reformulação caso não queira dar munição aos simpáticos à última.
Mas afinal de contas, diante de todos esses apontamentos e de tão parcos elogios valeria mesmo a pena lerO livro negro da Psicanálise? Não tenho dúvida que sim, mas afirmo que devemos fazê-lo com o devido distanciamento crítico. Mesmo com atraso, a obra em questão traz de volta algumas críticas à psicanálise sobre as quais continua valendo a pena ponderar. O contexto é em parte distinto ao daquelas feitas pelo citado historiador Henri Ellenberger, assim como por pensadores do porte de Georges Canguilhem, Michel Foucault, Gilles Deleuze e Felix Guattari, Martin Heidegger, Ludwig Binswanger, Paul Ricoeur e Ludwig Wittgenstein, só para citar alguns dos mais destacados. Isso porque muitos atores da trama mudaram de lugar, assim como também o próprio espaço institucional, político e cultural que a psicanálise ocupa na atualidade, especialmente na França e na Argentina (e, em menor grau, no Brasil). Porém, a dinâmica dos jogos de poder e dos interesses econômicos segue muito parecida, embora com a presença de novos personagens — caso das neurociências —, modulada com o “auxílio luxuoso” da psicofarmacologia. Certo é que além da menção às neurociências e à psicofarmacologia como parte da proposta de uma “vida depois de Freud”, O livro… não apresenta nada de tão novo em relação aos argumentos dos pensadores citados. Após sua leitura, até aqueles psicanalistas mais dogmáticos e sectários, avessos a qualquer crítica, se sentirão no direito de imputar a alguns autores do livro (especialmente aos associados às TCC) acusações e argumentosad hominem da mesma cepa daqueles dirigidos a Freud e à psicanálise. Nesse jogo de incriminações dos dois lados é importante ressaltar como algumas réplicas a O livro… foram desmascaradas pelos principais autores deste, em particular aquelas da coletânea organizada pelo eterno “genro-herdeiro” de Lacan, Jacques-Alain Miller, intitulada Anti-livro negro da psicanálise. Como se pode ver, aqui não há lugar para amadores.
Como disse antes, se por um lado as críticas a O livro… não esvaziam o valor de muitos de seus argumentos, por outro as críticas d’O livro… tampouco devem ser admitidas candidamente e postas na conta de uma psicanálise vista por ele como institucionalizada, fossilizada e que vive lançando mão de um enorme arsenal retórico por mera necessidade de sobrevivência. No Brasil há uma considerável e fecunda produção acadêmica que, para começar, avalia as relações entre psicanálise e neurociência por vias distintas às mencionadas na coletânea; discute criticamente a pertinência da metapsicologia freudiana para a própria disciplina em questão; analisa, a partir das filosofias da linguagem de Donald Davidson e de Richard Rorty, a perspectiva de uma psicanálise pragmática, que por sua vez reformularia a referida metapsicologia freudiana; pesquisa, de forma transdisciplinar, o âmbito do psicopatológico (psicopatologia fundamental); avalia as possibilidades e dificuldades de vigência do discurso psicanalítico no campo da Saúde Mental (especialmente nos Centros de Atenção Psicossocial); estuda as relações entre antropologia e psicanálise e entre a psicanálise e a filosofia, entre outros campos. São exemplos de uma disciplina não cristalizada ou dogmática, cujas considerações teóricas vão além da mera replicação do que foi dito por Freud no fim do século dezenove e no começo do século vinte. Ou seja, tal como quer O livro…, já existe vida depois de Freud, mas nem por isso ela precisa descartar a psicanálise como um saber fracassado, ultrapassado e carente de sentido — embora tampouco deva ser mitificado, convém frisar.
Mesmo com todas essas ressalvas, espera-se que a tradução brasileira sirva para gerar um debate análogo ao que ocorreu na França. Ainda que a psicanálise não repercuta por aqui com tanta veemência quanto nas sociedades francesa e argentina, sabemos (e vimos um pouco neste mesmo texto) sobre o seu considerável espaço no meio acadêmico, espaço esse até bastante explícito, mas que nem sempre é claro ou bem definido por parte dos profissionais que nele se encontram. Sendo assim, é importante prestarmos atenção às críticas sobre o valor e a atualidade da psicanálise. Ao mesmo tempo, convém atentar para o (mais recente) retorno a um biologismo mal disfarçado no âmbito da saúde mental, com sua ideia de “sujeito cerebral” e sua “linguagem da serotonina”, além do considerável poder de fogo (em termos econômicos) dedicado pelos laboratórios farmacêuticos não apenas à divulgação dos seus produtos, mas para “esclarecimentos” sobre as próprias “desordens mentais-cerebrais”, o jargão da vez. É necessário que sejamos críticos frente a essa verdadeira “reconfiguração neuroquímica da noção de ‘pessoa’” que está em curso, sobretudo em função de suas profundas implicações éticas e sociais. Que essa crítica seja feita numa medida análoga à dos autores d’O livro negro da psicanálise, mas com o cuidado de desbastar seus excessos e de não cair na armadilha das críticas ad hominem, da retórica inconsistente e de eventuais agendas políticas.

::: O livro negro da psicanálise: Viver e pensar melhor sem Freud ::: Catherine Meyer (org.) :::
::: Civilização Brasileira, 2011, 644 páginas :::


Ricardo Cabral
Psicólogo clínico (psicoterapeuta de orientação existencial) e mestre em educação tecnológica (CEFET/RJ).