quarta-feira, 15 de junho de 2011

O uso de encobertos na terapia comportamental











Maly Delitti1
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo


"Sinto uma grande angústia..." "Tive um sonho e quero lhe contar..." "Fiquei imaginando como seria..." "Nos meus sonhos eu sinto..."
Estas frases são ouvidas frequentemente por todos terapeutas, independentemente de sua abordagem teórica. Na realidade, todo terapeuta ouve relatos acerca de comportamentos encobertos. Além disso, todo terapeuta tem seus próprios sentimentos, sonhos, intuições, isto é, seus próprios comportamentos encobertos.
Na Terapia Comportamental, que se baseia nos princípios da Análise do Comportamento, considera-se que os eventos privados são comportamentos encobertos. No entanto, deve-se lembrar, como diz Skinner (1967), que "não há necessidade de supor que os eventos que acontecem sob a pele de um organismo tenham, por essa razão, propriedades especiais. Pode-se distinguir um evento privado por sua acessibilidade limitada mas não, pelo que sabemos, por qualquer estrutura ou natureza especiais" (p. 149). Os comportamentos encobertos são atividades de um organismo. Sonhar, pensar, sentir, intuir são comportamentos e como tais não precisam nem devem ser considerados como eventos mentais ou cognitivos. Considerá-los como mentais ou mesmo de uma natureza diferente dos comportamentos observáveis pressuporia a crença em uma mente ou psique, o que não faz parte da proposta do behaviorismo radical.



Segundo Skinner (1969), o comportamento é uma interação entre indivíduo e ambiente. A unidade básica de análise do comportamento é a contingência de três termos. A formulação das interações entre um organismo e seu meio ambiente, para ser adequada, deve sempre especificar: 1) a ocasião na qual ocorreu a resposta, 2) a própria resposta e 3) as conseqüências. As relações entre estes três aspectos constituem as contingências de reforço. Analisando-se as contingências da vida do indivíduo, da vida da espécie, e do grupo cultural, podem-se criar condições de discriminação, aprendizagem e ampliação de repertório dos indivíduos.
Em termos de terapia, dada a natureza da tarefa, trabalhamos básica e principalmente com os comportamentos encobertos. Na realidade, nossos clientes frequentemente vêm com a certeza de que seus problemas são causados por sentimentos, pensamentos etc, isto é, as pessoas acreditam que os comportamentos encobertos são as causas de seus problemas. Por isso, uma das principais tarefas do terapeuta é conseguir levar seus clientes a perceber como seus comportamentos encobertos são apenas um dos elos da contingência tríplice a ser analisada e como eles se relacionam a outros eventos do mundo interno e externo. Criar condições para a discriminação das contingências que controlam os comportamentos é a condição básica para a eficácia do processo terapêutico.


Os comportamentos encobertos, estando relacionados a eventos internos (mudanças no meio interno: sensações, percepções), ou a eventos do meio externo (alterações do ambiente) são extremamente importantes para o trabalho em terapia. Sendo os menos acessíveis, ficam sob controle de contingências frequentemente desconhecidas pelos indivíduos. O papel do terapeuta será o de criar condições para que seu cliente chegue à discriminação destas contingências e assim se torne um observador mais acurado de seu próprio comportamento. A partir do momento que adquire esta habilidade, o indivíduo estará mais apto a modificar seu comportamento e/ou ampliar seu repertório.
O objetivo deste trabalho é levantar algumas questões, partilhar algumas dúvidas e reflexões no que diz respeito à utilização dos encobertos na prática da terapia comportamental.
Desde sempre os sonhos intrigaram e atraíram as pessoas. Seus significados foram e são objeto de estudo de místicos e esotéricos, bem como instrumento de análise terapêutica para autores como Freud, Jung e outros. No entanto, para o behaviorismo radical, sonhar é comportar-se. Sonhar é "ver na ausência da coisa vista. A estimulação atual exerce então um controle mínimo e a história da pessoa e os estados resultantes de privação e emoção têm a sua oportunidade" (Skinner, 1982).
Penso que há três aspectos principais quanto ao uso dos sonhos na prática clínica: 1) sua utilização como instrumento de coleta de dados; 2) como instrumento de intervenção terapêutica e 3) permeando e embasando os dois primeiros aspectos, as diferentes funções que os sonhos (comportamentos encobertos) e os relatos dos sonhos (comportamentos expressos) adquirem na relação terapeuta-cliente.
Os terapeutas comportamentais frequentemente evitam usar a palavra "diagnóstico" por esta ter sido fortemente associada ao modelo médico, que pressupõe causas subjacentes ao comportamento, o que, como vimos, não faz parte do modelo teórico proposto pelo behaviorismo radical. No entanto, sabemos que o início do processo terapêutico tem certas características específicas. Primeiro, o terapeuta precisa conseguir estabelecer uma boa relação com seu cliente. Isto feito, há um período em que os principais objetivos são: a) identificar, de maneira clara e objetiva, quais comportamentos são disfuncionais; b) fazer a análise funcional desses comportamentos; c) descrever os recursos biológicos e do repertório comportamental do cliente e d) ter, enfim, uma descrição, a mais clara, objetiva e completa possível, da história de vida do cliente. Nesta fase inicial da terapia, que podemos chamar assessment (avaliação inicial acerca do que os indivíduos fazem - seus comportamentos e as condições que se relacionam a esses comporamentos), são levantadas muitas variáveis relacionadas ao comportamento alvo e, em função delas e também em função das contingências do momento, é que o terapeuta começa a levantar suas hipóteses e planejar sua intervenção. É importante que se tenha claro que a análise comportamental não é apenas limitada ao momento de coleta de dados e formulação de estratégias. A avaliação (evaluation) constante é um dos compromissos mais importantes e uma das características mais fortes da terapia comportamental, é um processo constante e contínuo.

"O que estou sentindo?" "O que está acontecendo comigo neste momento?" "Como o que acontece comigo agora, nesta relação commeu cliente, se relaciona a outros aspectos da vida dele?" Estas questões e outras que o terapeuta se coloca a cada momento do processo terapêutico são importantes e ignorá-las ou subestimá-las é prejudicial e perigoso para os terapeutas e clientes. A indagação e identificação, por parte do terapeuta, de seus próprios encobertos pode fornecer dicas acerca de que tipo de SD o cliente fornece em uma relação pessoal. Quando o terapeuta sente irritação, carinho ou tédio frente a um determinado cliente, precisa identificar se tais eventos internos estão relacionados a eventos de sua história pessoal, ou se tais encobertos se relacionam a contingências que envolvem o comportamento do cliente e, portanto, devem fazer parte de suas relações pessoais em geral.
Porém, a capacidade de auto-observação do terapeuta, ainda que indispensável, não é suficiente. Se o terapeuta não conseguir ter acesso aos encobertos de seus clientes estará sozinho, monologando ou em silêncio, e os objetivos terapêuticos não serão atingidos. Na prática da terapia comportamental individual há que se fazer, portanto, a análise dos comportamentos encobertos (e também dos abertos) de duas pessoas: do cliente e do terapeuta.
Os comportamentos encobertos dos clientes não podem ser observados ou acessados diretamente. É a partir de inúmeras formas de comportamento aberto que o terapeuta vai "interpretar" os possíveis encobertos e fazer a análise das contingências. Naturalmente, a interpretação por parte do terapeuta corre sempre o risco de ser incorreta ou sofrer viéses. Por isso, é sempre necessário discutir com o cliente se aquilo que o terapeuta compreendeu ou concluiu corresponde ao que ele pretendeu expressar.
Em relação aos sonhos, há necessidade de se notar que durante muito tempo, os terapeutas comportamentais ignoraram o assunto. Como os clientes frequentemente relatam sonhos, provavelmente o que ocorreu foi que, por falta de um modelo clínico adequado e também para evitar a punição por parte da comunidade científica, os terapeutas têm se esquivado de relatar como trabalham com os sonhos de seus clientes. Entretanto, através do relato de um sonho, posso ter acesso a fatos da história passada ou da história atual, que diretamente não seriam explicitados ou demorariam muito mais tempo para sê-lo. Este é um exemplo de como o sonho pode funcionar como um instrumento de coleta de dados na situação terapêutica.
Devemos nos lembrar que relatar um sonho é um comportamento manifesto que descreve um outro - o sonhar - comportamento encoberto, e que existem muitas relações comportamento-comportamento que precisam ser entendidas pela análise funcional. Por exemplo, o cliente que sonha (encoberto) com alguma coisa de sua infância e ao acordar, a partir dos SDs propiciados pelo sonho, se lembra (encoberto) de fatos que realmente ocorreram e que ele se esquecera, está evidenciando uma relação encoberto-encoberto. Ao relatar (comportamento aberto) tais fatos na situação terapêutica, o cliente pode, com o auxílio do terapeuta, chegar à discriminação de certas contingências, que sem o sonho poderia demorar mais tempo. Como se percebe, os sonhos são um dos instrumentos, como são também as fantasias, que o terapeuta utiliza para auxiliar seu cliente a chegar ao auto-conhecimento. Quando o cliente consegue, junto com o terapeuta, interpretar o próprio sonho significa, em última análise, que ele está conseguindo analisar as contingências que controlam seu comportamento. É importante aqui esclarecer que o terapeuta comportamental interpreta os sonhos de seus clientes apenas fazendo perguntas, como por exemplo: "o que você acha que seu sonho tem a ver com o que está ocorrendo em sua vida no momento?" ou "por que será que você sonhou com isso esta semana?". O terapeuta comportamental, devemos repetir, não considera o sonho algo simbólico ou um disfarce de alguma coisa. É um comportamento modelado por contingências e como tal, tem que ser analisado e entendido.
Em resumo, a tarefa do terapeuta é justamente criar condições para que o cliente entre em contato com as contingências atuantes em sua vida, para que consiga ficar sob controle de si mesmo e não de contingências que frequentemente nem são identificadas. A utilização dos encobertos, sejam sonhos, fantasias ou sentimentos, tem se mostrado um recurso extremamente rápido e eficaz para se chegar a estes resultados.
Gostaria, finalmente, de me referir a algumas das funções que os sonhos, ou seus relatos podem adquirir durante o processo terapêutico, funções estas que precisam ser analisadas para que se estabeleça uma boa comunicação entre cliente e terapeuta. Por exemplo, o relato de um sonho pode ser utilizado pelo cliente como um recurso metafórico ou como esquiva. Isto é, falar de algo aversivo através do relato de um sonho pode diminuir a aversividade da situação ou do tema a ser exposto. Relatar um sonho pode ser a forma de exprimir um sentimento, de se esquivar de temas ou mesmo uma forma de agredir o terapeuta ou testar seu nível de aceitação ou empatia. O cliente que diz: "estou sentindo que hoje você está meio chateado", ou "sonhei que você faltava na hora da minha terapia e nem me avisava..." ou "imagino como deve ser chato para você ter que ficar me ouvindo..." está fornecendo estímulos discriminativos para o terapeuta avaliar seu próprio comportamento, aberto e encoberto, ou pode também estar tentando obter mais reforçamento.
Já ouvi algumas vezes uma frase que penso que muitos outros terapeutas também ouviram. Algo como: "é estranho e triste, que você, que é a única pessoa que me entende, eu tenha que encontrar com hora marcada e ainda pagar por isto".
O que significa essa frase? Como o terapeuta pode utilizá-la de forma eficaz? Penso que o primeiro passo é criar condições para que o cliente perceba a sua relação com o terapeuta como uma amostra de um tipo de relacionamento: honesto, afetivo, verdadeiro. O segundo passo é levar o cliente a perceber que ele pode vir a ter relações semelhantes em sua vida, isto é, levar o cliente a generalizar uma forma de comportamento interpessoal que lhe é reforçadora.
Os comportamentos encobertos são expressos de diferentes maneiras e adquirem características de uma linguagem especial em terapia. Os clientes se comunicam com seus terapeutas de inúmeras formas. Contam conhos, recitam poemas. Silenciam. Choram. Certa vez um jovem iniciou sua primeira sessão citando Fernando Pessoa:
"O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
que finge que é mesmo dor
a dor que deveras sente ".
Acredito que o terapeuta é, entre outras coisas, um decifrador de códigos. É um pesquisador em busca de hipóteses. É um construtor de conhecimentos e modelador de comportamentos. O terapeuta leva o cliente à ampliação de seu repertório comportamental. Além disso, o terapeuta é primeiramente um ser humano, e como tal precisa estar sempre sensível a cada uma das múltiplas contingências que modelam e mantêm seu comportamento. Principalmente na sua relação com o cliente, seu cúmplice e seu parceiro na busca por uma vida melhor.

Referencias Bibliográficas
Skinner, B.R (1969). Contingencies of Reinforcement. A Theoretical Analysis. N Jersey: Prentice Hall, Inc.
Skinner, B.F. (1967). Ciência e Comportamento Humano. Ed. Universidade de Brasília.
Skinner, B.F. (1982). Sobre o Behaviorismo. SP: Ciiltrix.


(1) Departamento de Métodos e Técnicas, Faculdade Psicologia, Laboratório de Psicologia Experimental. Rua Cardoso de Almeida, 986, Perdizes, SP, CEP 05013.